Em 2026, o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG) vai comemorar 20 anos de vida. Para celebrar as conquistas e comemorar as duas décadas do curso, o CriaLab|UEG está realizando o projeto "Cinema, Histórias e Laranjeiras". Até 2026, ele se propõe a colher depoimentos de egressos e egressas de destaque e de pessoas que ajudaram a construir o curso e apresentá-los na forma de entrevistas que serão publicadas nos sites institucionais da UEG, e, ao final, reunidas em um e-book. Além disso, em 2026, o projeto irá realizar o plantio de um pomar de laranjeiras na Unidade Universitária Goiânia-Laranjeiras com uma árvore dedicada a cada turma. Confira a seguir o 5º episódio da série, com a realizadora e diretora de arte Wilma Morais.
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Em 2025, o cinema nacional recebeu seu primeiro Oscar com o longa Ainda estou aqui. Dirigido por Walter Salles e inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme reuniu grande elenco, liderado pela atriz Fernanda Torres, para contar uma história verídica de um dos períodos mais tenebrosos da ditadura militar brasileira. Para a realização de uma obra de tamanho sucesso e envergadura, é necessária uma equipe de produção à altura, e o longa contou com profissionais de excelência em cada uma de suas múltiplas instâncias criativas. A UEG não ficou de fora desse marco histórico no cinema nacional, e foi muito bem representada pela diretora de arte Wilma Morais. A Wilma participou da equipe de Direção de Arte de Ainda estou aqui e nos relata um pouco dessa experiência, e de sua trajetória na profissão, neste episódio da série Cinemas, Histórias e Laranjeiras:
CHL – Wilma, conta um pouco como foi que você chegou ao curso de Cinema e Audiovisual da UEG. Quem era a Wilma que veio fazer esse curso lá em 2012?
Wilma Morais – A Wilma de 2012 não fazia ideia de onde estava se enfiando. Eu queria fazer Arquitetura. Enquanto esperava o resultado do vestibular, também fiz a prova da UEG. E, nesse tempo de espera, acabei sendo chamada para o curso de Cinema — que, na época, ainda era Comunicação Social. Eu realmente não fazia ideia do que era o curso. Mas, quando cheguei na primeira semana de aula, me encantei. Eu decidi ali que nem ia olhar o resultado do outro vestibular. Continuei. E fiquei.
CHL – Você entrou mesmo sem saber direito o que era.
Wilma Morais – Totalmente às cegas. Eu até brincava que, como morava perto da unidade da UEG, resolvi tentar esse curso. Já tinha feito outros vestibulares, e esse era de um processo seletivo que acontecia a cada três anos — não lembro o nome agora. Era só mais uma tentativa, pensei: se passar, passou. E foi isso.
CHL – Você é de Goiânia ?
Wilma Morais – Sou, nascida e criada em Goiânia.
CHL – E o cinema? Nunca tinham entrado na sua vida antes?
Wilma Morais – Sempre gostei muito de assistir filmes. Na infância e adolescência, eu via muitas séries também. Lógico que isso é algo que todo mundo faz, mas meus pais sempre gostaram muito de cinema e sempre me levaram para assistir. Então eu tinha esse gosto, mas nunca me imaginei fazendo cinema. A ideia era Arquitetura. Tanto que, depois de formada, tentei de novo: prestei vestibular e passei em Arquitetura na UEG, durante a pandemia. Como estava tudo parado, resolvi tentar. Fiz um ano, tranquei porque me mudei para São Paulo, e acabei não voltando mais.
CHL – Você vê alguma relação entre a produção de arte, de objetos e a Arquitetura?
Wilma Morais – Com certeza. Tem muita gente formada em Arquitetura que trabalha com direção de arte ou cenografia, tanto aqui em Goiás quanto em São Paulo — lá até mais. A própria ideia de “direção de arte” vem da Arquitetura, desse desenho do espaço. Uma das primeiras diretoras de arte do Brasil, a Vera Hamburger — com quem já trabalhei, inclusive — é formada em Arquitetura. O nome “direção de arte” foi surgindo aos poucos, né? A partir das primeiras cenografias. As primeiras experiências eram chamadas de cenografias mesmo, com esse foco em montar um cenário. Aos poucos, isso foi evoluindo e ganhando o nome de cenografia, que depois se transformou em direção de arte.
CHL – A cenografia acaba se tornando a direção de arte.
Wilma Morais – Exato. E tem também uma influência pessoal: meu pai é arquiteto. Então, sempre tive uma certa proximidade e afinidade com isso.
CHL – E quando você entrou no curso, como foi essa experiência? O que você viveu, o que aprendeu nesses anos de UEG?
Wilma Morais – No primeiro ano de faculdade, eu ainda não tinha ideia do que estava fazendo. Mas gostava muito de aprender. Então, me inscrevi em todos os laboratórios, todos os cursos de extensão, tudo que tinha na UEG eu fazia. Eu passava o dia inteiro na faculdade. Participei do Cineclube Laranjeiras, fiz projetos de roteiro. Fiz também atividades de distribuição de filmes... tudo o que aparecia, eu me jogava. Era uma forma de tentar entender o que eu queria fazer. Eu gostava mesmo era de estar envolvida, de participar, de assistir.
CHL – Você mergulhou mesmo no ambiente.
Wilma Morais – Sim. Às vezes nem tinha atividade programada, mas eu ficava lá à tarde assistindo filmes na faculdade. Juntava com um grupo de amigos que também era bem interessado e a gente ficava vendo filmes juntos. Era isso: eu queria viver aquilo.
CHL – E quando o seu interesse pela direção de arte começou a se definir?
Wilma Morais – No final do primeiro ano, comecei a direcionar meu olhar para a direção de arte. Pensei: “acho que gosto disso”. Fui atrás de pessoas que já trabalhavam na área, como o Benedito Ferreira, que na época era o maior diretor de arte de Goiânia, uma grande referência. Bati na porta dele sem vergonha nenhuma e falei: “me chama pra trabalhar, vou de graça”. E foi isso. Ele me chamou.
CHL – E aí você teve sua primeira formação prática?
Wilma Morais – Totalmente. Ele me ensinou tudo o que eu não sabia. Pegou na minha mão mesmo. Me mostrou o que é uma decupagem de arte, como montar um projeto de arte... Devo muito a ele. A partir daí, comecei a trabalhar com ele em publicidade, videoclipes e alguns curtas. Com o tempo, ele foi parando de atuar diretamente com direção de arte e começou a me indicar. Como eu estava sempre com ele, naturalmente fui assumindo alguns trabalhos.
CHL – E aí veio sua primeira direção de arte assinada.
Wilma Morais – Sim! O primeiro curta que assinei como diretora de arte foi em 2015 — inclusive foi tema do meu TCC. O Benedito não pôde fazer, porque tinha quebrado a perna. Ele falou: “vai lá, você consegue”. E foi. Caiu no meu colo e eu topei o desafio.
CHL – Qual era o nome do curta?
Wilma Morais – Lápis Sem Cor. Era um curta infantil, bem fantasioso. A história girava em torno de uma criança que imaginava várias coisas. Foi muito legal de fazer, bem colorido, uma experiência ótima.
CHL – Você comentou sobre seu primeiro ano na faculdade e como já estava experimentando várias possibilidades. Mas houve algum momento específico, um clique que te fez perceber que a direção de arte era o seu caminho?
Wilma Morais – Teve sim, embora eu não lembre exatamente o momento. No primeiro ano eu testei de tudo: fiz produção, tentei fotografia, mas logo percebi que não era pra mim. Som então, menos ainda. Como acontece com muita gente no início, quando a gente não sabe muito bem para onde ir, a gente acaba caindo na produção. Eu fazia, mas odiava.
CHL – E quando veio esse clique, essa virada de chave?
Wilma Morais – Acho que foi no começo do segundo ano, numa matéria de produção com a professora Thaís. A gente tinha que entregar um exercício final, que era a produção de um videoclipe. Eu escolhi uma música francesa chamada L’amour e decidi fazer o clipe praticamente sozinha. Na época, a gente ainda não tinha estrutura nenhuma, então fui com três colegas da faculdade e fizemos acontecer.
CHL – E foi a partir desse exercício que algo mudou?
Wilma Morais – Sim. Quando entreguei o trabalho e a gente assistiu em sala, a Thaís me perguntou: “Wilma, você já parou pra pensar que você tem um olhar? Que você gosta disso?”. Eu nunca tinha percebido. Gostava de fazer, claro, mas nunca tinha pensado que aquilo era direção de arte. E naquele momento, quando ela me disse isso, foi que a chave virou.
CHL – Às vezes a gente precisa de alguém para dar nome àquilo que a gente já faz, né?
Wilma Morais – Exatamente. Foi isso. E esse videoclipe era bem artístico, com muitas cores, luzes pensadas — tudo escolhido de forma bem intencional. Quando ela me falou “você sabe o que é isso, né?”, e eu respondi “não”, ela disse “é direção de arte”,foi muito revelador. A partir daí, comecei a focar mesmo na direção de arte.
CHL – O que você observa daquele período do cinema goiano? O que mudou em relação ao que você vivenciou depois em São Paulo?
Wilma Morais – Eu acho que o cinema em Goiás ainda é muito recente. Claro que, como a Thaís falou, tivemos os desbravadores há mais de 30 anos, mas naquela época ainda não existiam cursos de formação específicos. Eram pessoas que faziam, mas muitas vezes sem ter pleno domínio técnico ou clareza das funções dentro de um set.
Com a criação do curso de Cinema da UEG, esse olhar começou a se aprimorar. A gente passou a entender melhor as funções, as demandas, como escrever projetos, e a perceber que também fazemos parte de um ecossistema de editais públicos — que podemos nos inscrever e, sim, sermos aprovados.
A partir disso, o cinema goiano começou a crescer, tanto em termos de equipe quanto de estrutura. Mas ainda considero tudo muito recente. Apesar de termos editais aprovados, os orçamentos ainda são baixos. Só agora estamos começando a ver a produção de longas e séries sendo feitas aqui em Goiânia.
Ainda falta muito, especialmente no que diz respeito à especialização das equipes. Por exemplo, na área de arte, é raro encontrar contra-regras, assistentes ou produtores de arte. Diretores de arte, então, são poucos. E muitos dos que existem acabam trabalhando com publicidade, porque é o que sustenta financeiramente.
Por isso, quando digo que trabalho exclusivamente com direção de arte para cinema, me sinto privilegiada. Não é algo comum. Ter alcançado essa posição só foi possível porque fui para São Paulo, onde o mercado já está totalmente estabelecido. Lá, quando se fala em cinema, as pessoas sabem do que se trata. Você não precisa explicar por que precisa colocar o nome de um projeto em uma nota fiscal, por exemplo.
Além disso, São Paulo tem estrutura. Existem acervos, locadoras específicas para cinema — desde equipamentos até objetos de cena, figurinos. O acesso é muito mais fácil. É um mercado que já faz cinema há muito tempo e tem uma base sólida.
Os orçamentos também são muito maiores. Seja por editais públicos ou pelos streamings, os valores chegam a quatro, cinco milhões, ou mais. É algo bem distante da nossa realidade aqui.
CHL – E você participou de produções para Netflix e Amazon, como o Maníaco do Parque e O Lado Bom de Ser Traída, certo?
Wilma Morais – Sim, mas também participei de produções feitas aqui em Goiás que estão nesses streamings — mesmo não sendo originalmente produzidas por eles. Por exemplo, o longa Atrás da Sombra foi distribuído pela Amazon. E tem também Nosso Amor de Hoje, um piloto de série que estava na Amazon, não sei se ainda está no catálogo.
Já A Última Imagem do Benedito é um filme mais voltado para festivais, então não foi para streaming. Mas é isso: em Goiás ainda não conseguimos aprovar produções diretamente para os streamings, porque o mercado é recente. Porém, conseguimos distribuir.
Tem também uma série do Gabriel, meu marido, chamada Sal a gosto, que está sendo exibida pelo Canal Brasil. Foi aprovada pelo Edital de TVs Públicas, e, como parte desse edital, precisa ser exibida também em emissoras públicas, como a TV UFG. Então, existe espaço.
CHL – E em São Paulo o processo é outro?
Wilma Morais – Completamente diferente. Lá, os canais entram em contato com as produtoras dizendo que querem produzir determinado projeto. As produtoras apresentam os roteiros, as propostas, e passam por um processo de votação interna nos canais. Quando o projeto é aprovado, já vem com orçamento completo. Eles realmente investem para que a produção aconteça. É outro universo.
CHL – Muitos têm falado sobre sua participação em Ainda Estou Aqui, que é o filme da vez, mas queria saber: qual foi a produção que você mais gostou de fazer? Foi ele ou outro? O que te marcou?
Wilma Morais – Difícil escolher. Mas, como diretora de arte, acho que Sal a gosto foi uma das experiências mais intensas e gratificantes. Era uma série de 10 episódios, e conseguimos gravar tudo em apenas cinco semanas. Foi uma verdadeira loucura — viramos noites, a equipe toda se entregou demais — mas também foi muito especial. Foi a primeira vez que me senti acolhida de volta em Goiás, trabalhando com uma equipe daqui, com uma estrutura desafiadora, mas com muito carinho envolvido.
Como produtora de objetos, a produção que mais gostei de fazer foi Maníaco do Parque. Os cenários eram grandiosos, o que me desafiou bastante. Por exemplo, tivemos que recriar a redação de um jornal nos anos 1990 — especificamente 1996 — e era um espaço enorme, algo como três salas juntas. Só para esse cenário, precisei produzir 26 computadores antigos, daqueles de tubo, além de mesas de ferro da época. Era tudo muito específico.
E isso me levou a aprender e a descobrir muitas coisas em São Paulo. Mesmo já tendo certa experiência, lá eu vi que havia ainda muito mais por explorar. Foi um desafio enorme, mas muito legal.
CHL – Como jornalista e leigo no cinema, eu estava refletindo: a direção de arte e a produção de objetos são áreas que ficam nos bastidores e que só chamam atenção, muitas vezes, quando tem algum erro. Imagino que exija muita pesquisa histórica, principalmente quando se trabalha com outras épocas, como anos 90 ou, no caso de Ainda Estou Aqui, anos 60. É isso mesmo?
Wilma Morais – Totalmente. O cuidado com os detalhes é constante, do início ao fim. Em Ainda Estou Aqui, por exemplo, retratamos o período da ditadura militar no Brasil, e os episódios cobrem várias décadas. Os personagens envelhecem, o tempo passa — e isso exige que tudo acompanhe esse avanço.
A produção cuida de alugar os carros de cena, por exemplo, mas quem pesquisa e define o que precisa ser usado somos nós da direção de arte. Então é nossa responsabilidade entender que tipo de carro era usado em cada período, e entregar essa demanda para a produção.
Mas não é só isso. Tudo precisa ser pesquisado: o telefone, a caneta, o papel, a impressora, a TV... tudo. E não é só perguntar "é da década de 60?", mas saber de qual ano exatamente, qual modelo, qual marca era comum na época. Tem que pesquisar visualmente. Eu passava horas comparando modelos, olhando fotos antigas, buscando referências para garantir autenticidade.
CHL – Até uma almofada, por exemplo?
Wilma Morais – Exatamente. A estampa de uma almofada pode entregar a época errada. A capa, o tecido, o padrão... tudo precisa ser coerente com o período retratado. Porque sempre vai ter alguém com um olhar clínico que vai perceber e apontar. É um trabalho minucioso, mas essencial para a imersão do público.
CHL – O que você diria para o aluno de Cinema e Audiovisual da UEG hoje? Qual conselho você daria para quem está começando essa trajetória que você fez, sabendo que, como você disse, não é tão comum conseguir esse espaço e fazer carreira?
Wilma Morais – Eu diria para focar no que você realmente quer fazer e não demorar muito para se dedicar a isso. É importante se entregar de verdade, sem vergonha. Às vezes a gente mesmo cria barreiras e limitações, mas, se você tem vontade, tem que ir lá e fazer. Eu sempre me dediquei muito, estudei bastante, mas nunca tive medo de tentar — mesmo quando achava que não dava conta, eu me jogava.
É importante se dedicar, se permitir experimentar e acreditar que há espaço para você. Muitas vezes a gente pensa que é pequeno demais, que não vai conseguir lá fora, mas eu descobri, quando cheguei em São Paulo, que eu sabia o que estava fazendo — e isso foi um choque, porque até então eu achava que não era tão boa assim.
Cada filme que faço é um desafio para mim, é um grande aprendizado. A gente acha que a gente é tão pequena que a gente não consegue espaço lá fora, mas sim... Quando cheguei em São Paulo, percebi que sei o que faço e que estou no mesmo nível de muita gente boa ali. Então é se dedicar e demonstrar que realmente você dá conta. Quando eu vi o trabalho das pessoas lá, percebi que eu era melhor do que pensava. Então, o que eu recomendo é: se dedique, demonstre que você tem capacidade, que você sabe o que faz. Em Goiás tem muita gente boa, então o que falta é parar de duvidar e se jogar, dar a cara a tapa, tentar mesmo.
(Comunicação Setorial|UEG, com informações do CriaLab)