Degustação Crítica - Mostra Washington Novaes - Panorâmica

13/06/2025

Degustação Crítica 

 

Já se passaram alguns dias e a saudade da experiência FICA 2025 começa a surgir no horizonte. E sabemos que, em quesito de horizontes, a Cidade de Goiás serve uma natureza exuberante, assim como os seus sabores possíveis de serem encontrados por toda a sua extensão, são diversos e não deixa a desejar para ninguém. Pensando nesse contraponto entre as diversas coisas que essa maravilhosa cidade apresenta e ao mesmo tempo na identidade local que elas possuem, nossos críticos desenvolveram três críticas panorâmicas sobre as mostras presentes no evento e convidamos você a fazer essa degustação conosco!

Em continuidade, trazemos à mesa de degustação a crítica da Mostra Washington Novaes, feita por Gabriela de Mello, aluna da Universidade de Brasilia - UnB e Victor Gabriel, aluno da Universidade Estadual de Goiás - UEG, em íntegra, segue o texto feito em conjunto:

 

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Mostra Internacional Washington Novaes: retratos coletivos de generosidade e indignação frente a tragédias
por Gabriela de Mello e Victor Gabriel da Silva Guimarães Rosa

 

A Mostra Internacional Washington Novaes leva o nome do prestigiado jornalista ambiental que foi referência no Brasil por se dedicar a questões do meio ambiente e dos povos indígenas, tendo produzido documentários e livros ao longo de sua trajetória nesse universo. Foi também presidente de honra do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental de Goiás (Fica). Em entrevista concedida após o falecimento do jornalista, seu filho Pedro Novaes traz uma homenagem ao pai que sintetiza, também (e não por mera coincidência), o propósito satisfatoriamente atingido da mostra: “Que a gente possa se lembrar dele como essa referência, tanto como pai quanto como jornalista: absurdamente generoso e indignado. E que o exemplo dele nos ajude a superar essa tragédia política, sanitária, ambiental e social que estamos vivendo”.

Foram exibidos, ao todo, oito curtas e seis longas, incluindo ficção, documentário e docuficção tanto de formatos experimentais quanto mais convencionais, passando por vários cantos do Brasil, pelo Cazaquistão, pela Alemanha e pela República Tcheca. Cada equipe realizadora pôde contribuir, por meio dos filmes e das rodas de conversa pós sessão, para a construção de debates e ideias inspiradoras na construção de sociedades em maior harmonia com a natureza, com os outros e com nós mesmos.

O primeiro dia abre pela sessão dupla de Encontro das águas e O silêncio das ostras, já na segunda sessão, à noite, assistimos Terra-encantada - O diabo velho. As críticas completas sobre os três primeiros filmes podem ser conferidas aqui no site do Encontro das Escolas de Cinema do Brasil Central ( https://www.ueg.br/cinemadobrasilcentral/ ).

Assim como no primeiro dia, os outros programas também foram bem demarcados pela curadoria, no que diz respeito às conexões existentes entre os filmes. A sessão de quinta à tarde exibiu os documentários Lichens are the way, de Ondřej Vavrečka e We live here, de Zhanana Kurmasheva, que nos fizeram olhar para elementos da natureza pouco ou nada visíveis. No caso do primeiro - um curta experimental - os líquens são observados sob um ponto de vista de admiração da configuração de vida desse organismo. Um líquen é composto por algas ou cianobactérias que vivem entre filamentos de várias espécies de fungos numa relação de mutualismo, mantendo propriedades diferentes das de seus organismos componentes. Já no segundo filme, o elemento invisível é a radiação emitida pelos
restos de uma antiga base nuclear soviética localizada próxima à Estepe Cazaque e que assola gerações na região. Trazendo, até hoje, inúmeros problemas de saúde e nenhuma retaliação a essas famílias. Ambos suplicam, de formas quase opostas, a necessidade do cooperativismo entre os seres humanos. No entanto, enquanto We live here se propõe a maiores explicações acerca de sua problemática, Lichen are the way divide opiniões quando decide não explicar tão objetivamente seu discurso. No curta, os líquens em si acabam protagonizando a maior parte da narrativa.

Durante a Sessão 4, acompanhamos filmes que abordam a resistência de diferentes povos frente à destruição de seus territórios. O curta Entre as cinzas, de Daniel Calil e Renato Ogata, retrata a luta de um grupo de brigadistas da região da Chapada dos Veadeiros para conter os incêndios criminosos que assolam a área. Já em Cavaram uma cova no meu coração, do diretor Ulisses Arthur, uma gangue de adolescentes planeja destruir a máquina responsável pelos tremores e pelo afundamento do solo. Quando todo o entorno é demarcado como área de risco, a imaginação insurgente torna-se a arma possível.

Esses curtas abrem espaço para o grand finale da noite: o longa Isto é o nosso tudo, de Frederik Subei. O filme acompanha o povo Guajajara, no Norte do Brasil, que se recusa a se curvar diante da destruição de suas terras e das do povo Awá. Em resposta, eles criam um grupo de guardiões da floresta, determinados a defender a Amazônia. Embora os filmes apresentem entrevistas em momentos pontuais, com uma linguagem expositiva, suas estruturas narrativas se aproximam, majoritariamente, de uma linguagem observativa. A câmera acompanha os personagens em suas ações, buscando captar a realidade de forma direta, sem mediações constantes ou a presença de narração. Essa escolha estilística permite que o espectador observe os acontecimentos com uma sensação de presença, ampliando a força dos gestos de resistência retratados nos filmes. Apesar da seriedade do tema, o longa apresenta momentos que prendem a atenção do público e até geram humor, como na cena em que os personagens conferem os boletins de urna após as eleições, verificando se alguém havia votado em um candidato à presidência conhecido por ser contrário aos direitos dos povos indígenas, observando que ninguém tinha votado, um deles diz que se tivesse algum voto eles iriam caçar o responsável até descobrir quem foi.

Sexta feira, na sessão única do dia, a programação não deixou de surpreender: começamos pelos curtas docuficcionais A nave que nunca pousa, de Ellen Morais e último varredor, de Perseu Azul e Paulo Alípio, finalizando no longa documental Mãos à Terra, de Sérgio Guidoux. Passando por praticamente todas as regiões do Brasil, vimos os impactos das usinas eólicas num quilombo na Paraíba, um varredor de soja no Mato Grosso e a trajetória do agronegócio e da agricultura familiar em expansão a partir do Rio Grande do Sul. A conexão entre os filmes se dá quando pensamos nas relações entre o ser humano e a terra, sejam elas possibilitadas ou impossibilitadas por condições políticas, econômicas e sociais do país em que vivemos.

A última sessão da Mostra Washington Novaes apresentou um recorte sensível sobre a maternidade em diferentes contextos. O curta de animação Marés da noite, de Juliana Sada e Noemi Martinelle, nos conduz por uma noite de sonhos de uma jovem mulher grávida que viveu a tragédia de São Sebastião. Entre as feridas ainda abertas e a esperança de uma nova vida que carrega em seu ventre, a obra se destaca pela delicadeza estética e pela execução. Na sequência, o documentário Travessia, de Karol Felicio, aborda o cotidiano da aldeia indígena Rio Piraquê-Açu e revela os dilemas enfrentados por jovens mães indígenas que, embora acolhidas pela avó parteira Keretxchu, optam por parir em hospitais. A escolha aprofunda o debate sobre como práticas ancestrais resistem e se transformam.

Ambos os curtas abrem o caminho para o longa que encerra as sessões da mostra, Tijolo por tijolo, filme destaque da premiação do 26º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, que aconteceu neste domingo, 15/06. O filme apresenta Cris, uma personagem carismática e fascinante. Grávida do quarto filho e em busca de realizar a laqueadura, ela trabalha como influenciadora digital enquanto tenta reconstruir a casa e reestruturar a própria vida. A abordagem ambiental, embora sutil, se faz presente como pano de fundo num cenário de moradias subdesenvolvidas. Em uma narrativa de auto representação, o filme entrega o que promete: entretém, emociona e escancara as contradições, desigualdades sociais e urgências de uma mulher que luta por autonomia sobre seu corpo e seu futuro. A premiação foi mais do que justa.

Por fim, é importante destacar o papel da curadoria na escolha dos filmes exibidos, que, ao dialogarem entre si, constroem uma narrativa interligada. O último filme encerrou as mostras competitivas reforçando uma conexão temática presente não apenas na Mostra Washington Novaes, mas também nas Mostras Goiana e Indígena, especialmente ao propor uma reflexão sobre a relação entre território, resistência, memória e os processos de colonização e descolonização.

Vale lembrar que, para quem não pôde acompanhar ou deseja rever os filmes exibidos na Mostra Washington Novaes, parte da programação segue disponível por tempo limitado no site oficial do FICA ( https://fica.go.gov.br/p/4014-mostras-competitivas-2025 ). 

 

RESIDENCIAGABRIELA RESIDENCIAVICTOR_GABRIEL  

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A Degustação Crítica integra a Residência de Crítica Cinematográfica é parte de uma iniciativa que visa ampliar os espaços de formação e circulação da crítica no Brasil Central, incentivando o olhar autoral e analítico de novos críticos em diálogo com uma das mais importantes vitrines do cinema ambiental no país. A produção textual dos residentes é feita sob coordenação e orientação do professor do Instituto Federal goiano da cidade de Goiás, Estevão de Pinho Garcia, com auxílio em monitoria do aluno de cinema da Universidade Estadual de Goiás, Antonio Ribeiro.
O Encontro das Escolas de Cinema e Audiovisual do Brasil Central conta com o financiamento da Secretaria de Estado da Cultura de Goiás (Secult - Go) e da Universidade Estadual de Goiás (UEG), além do apoio executivo da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Fundação RTVE. O evento tem sido transmitido pelo CriaLab - UEG, a UEG TV e a Radio UEG Educativa.