A noite caiu, o tempo deu uma esfriada na Cidade de Goiás e quando for sair é melhor levar o casaco. Mas nem por isso o movimento nas ruas diminuíram, muito pelo contrário, os estabelecimentos estão prontinhos para te servir aquela comida quentinha. E por aqui a coisa não é diferente, saindo direto do forno das ideias, trazemos três novas degustações críticas.
Nessa segunda rodada da noite, o crítico Victor Gabriel, aluno da Universidade Estadual de Goiás - UEG, saboreou um longa na Mostra Washington Novaes em sua sessão 02. Confira na íntegra o sabor deixado:
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Afinal, nossos colonizadores foram heróis ou vilões?
Mostra Washington Novaes | Programa 2
Por Victor Gabriel da Silva Guimarães Rosa
Afinal, nossos colonizadores foram heróis ou vilões? Esse é o fio condutor que atravessa a construção narrativa de Terra-Encantada - O Diabo Velho, longa exibido na segunda sessão da Mostra Washington Novaes. Dirigido por Robney B. Almeida, o filme encerrou a primeira noite das mostras competitivas com uma conexão temática apresentada em todos os filmes exibidos não só na Mostra Washington Novaes, como também nas mostras Goiana e Indígena, especialmente ao propor uma reflexão da relação entre território, memória e processos de colonização.
Gravado em Goiânia, atual capital de Goiás, na cidade de Goiás, antiga capital do estado, anteriormente conhecida como Arraial de Santana, e em regiões ao redor, o filme surgiu a partir de um longo processo de produção. A ideia foi concebida pelo diretor após assistir a uma peça teatral de um amigo na Cidade de Goiás, despertando, desde então, o interesse em retratar lendas urbanas goianas.
A trama parte do imaginário de pensar sobre o sumiço da estátua do Anhanguera, localizada no cruzamento das principais avenidas de Goiânia. A partir daí, parte-se de rumores se teria sido sequestrada por ativistas exigindo a devolução do ouro roubado pelos paulistas? Ou teria simplesmente ganhado vida, vagando como uma espécie de fantasma pelos arredores da cidade? Esses imaginários alimentam a dimensão fantástica do filme, que se entrelaça com a investigação crítica da história civilizatória goiana, uma história que, como tantas outras, foi contada apenas pelos vencedores.
Entretanto, o filme não se limita às gravações feitas, materiais de arquivo também são utilizados em sua construção. Dividido em quatro partes intituladas, o longa mistura linguagens durante suas duas horas de duração. Inicialmente, o filme estabelece uma relação com o modo expositivo. Nesse modo, o filme expõe o seu tema a partir das convenções clássicas do documentário: uso de entrevistas, narração ao estilo “voz de Deus”, retórica argumentativa sobre o seu tema e não se limitando a ouvir apenas um lado da história.
Mas Terra-Encantada – O Diabo Velho não se restringe a essa abordagem direta. Ao manter no corte final a presença do boom, os erros de gravação e os bastidores das entrevistas, o filme se insere no modo participativo, tendo em vista os momentos que o diretor e equipe conversam com os entrevistados. O filme não tem medo de se revelar como um filme, o espectador é lembrado de que está diante de uma obra audiovisual, construída e consciente da linguagem que utiliza.
Ao acompanhar a trupe de artistas mascarados que performam pelas ruas, o filme constrói um universo reflexivo e performático. As máscaras representam elementos da cultura goiana, como a onça, símbolo do cerrado e se tornam ferramentas para evocar as vozes silenciadas durante o processo de colonização, sendo assim, um processo de descolonização. Além disso, pode-se dizer que essa construção narrativa é a visão do cineasta colocada sobre a temática do documentário.
O diretor também insere sua trajetória pessoal, especialmente ao narrar a história da mãe, que abandonou os próprios sonhos para posteriormente se casar com um viúvo. Esses relatos costuram o íntimo ao coletivo e aproximam o espectador da experiência de quem carrega, na pele e na memória, as contradições de um mundo conservador e sem raízes firmes com o ‘‘diabo-velho’’, vulgo o famoso Anhanguera. Um povo sem memória é um povo fácil de ser colonizado, e talvez, como sugere a narrativa, não adiante mais devolver o ouro, a colonização está entranhada no cotidiano e na estátua presentes na avenida.
Terra-Encantada - O Diabo Velho é um filme que não se prende à construção de um documentário tradicional. Ao revisitar a invasão de territórios que vem acontecendo há séculos no país com um olhar crítico e estético definido, o filme propõe não apenas uma revisão histórica, mas uma busca por identidade. No fim das contas, somos um Brasil de muitas civilizações e essa pluralidade precisa ser reconhecida e retratada nas telas.
Para quem perdeu a sessão, o filme segue disponível no site oficial do FICA e pode ser votado para o prêmio de júri popular. E fica o pequeno spoiler, há uma cena pós-créditos que precisa ser vista.
Sinopse:
Terra Encantada - O Diabo Velho | Enchanted Land - The Old Devil (Documentário | GO, Brasil | 2025 | 120min. Direção: Robney B Almeida)
Encravada no cruzamento das duas principais avenidas de Goiânia, a estátua do Anhanguera desaparece. Enquanto acompanhamos uma trupe de artistas mascarados que performam pelas ruas da cidade, rumores nos contam o que pode ter acontecido com a estátua. Alguns dizem que ela foi sequestrada por um grupo de ativistas e que em troca pedem todo o ouro roubado pelos paulistas. Mas a maioria da população prefere acreditar que ela tenha ganhado vida e está assombrando os arredores da cidade. E com isso surge a história da colonização do Estado de Goiás, da dizimação dos povos originários, da escravidão dos povos negros, da destruição do cerrado e da formação de um dos Estados mais conservadores da sociedade brasileira.
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