A noite caiu, o tempo deu uma esfriada na Cidade de Goiás e quando for sair é melhor levar o casaco. Mas nem por isso o movimento nas ruas diminuíram, muito pelo contrário, os estabelecimentos estão prontinhos para te servir aquela comida quentinha. E por aqui a coisa não é diferente, saindo direto do forno das ideias, trazemos três novas degustações críticas.
Dessa vez, a crítica Helena Versiani, aluna da Universidade de Brasilia - UnB, desfrutou dos filmes exibidos na Mostra Indígena em sua sessão 02. Confira na íntegra o que aguçou os seus sentidos e percepções:
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Cinemas Indígenas no FICA
Mostra de Cinema Indígena e Povos Tradicionais - Programa 02
Por Helena Versiani
O segundo programa da Mostra de Cinema Indígena e Povos Tradicionais do FICA apresentou dois curtas e um longa-metragem de diferentes partes do Brasil. O encontro desses filmes promove a discussão sobre a relação dos povos originários com seu território e a força da união de diferentes grupos étnicos em prol do movimento indígena. A sessão, entretanto, foi marcada por falhas da produção: a altura da tela, combinada à falta de inclinação dos assentos da sala, dificultou ou mesmo impossibilitou a leitura das legendas por grande parte do público. A projeção do longa foi interrompida subitamente por erro da produção e uma homenagem nos créditos foi atrapalhada por um anúncio no microfone.
Esses problemas demonstram questões graves de produção da mostra, que está sendo realizada na Casa de Memória do Judiciário, em uma sala improvisada alternativa ao Cine Teatro São Joaquim, e em horários concomitantes com as outras mostras competitivas. A qualidade do som e da imagem é significativamente pior que a da sala principal. Assim, a organização do FICA demonstra inferiorizar a relevância e qualidade dos filmes de realizadores indígenas e originários. Ainda assim, a força das obras se sobressaiu.
O curta Minha câmera é minha flecha, de Natália Tupi, apresenta uma abordagem autoral construída a partir do seu protagonista, o comunicador e fotógrafo Richard Wera Mirim. O curta é permeado por suas imagens do cotidiano e do movimento indígena. “Hoje, a câmera é a arma para defender o nosso território”. Com escolhas econômicas de planos e movimentos de câmera, o curta apresenta enquadramentos certeiros que demonstram imageticamente a integração da comunidade Guarani Mbya com sua terra e comentam sobre as ameaças que o cercam. A especulação imobiliária aparece representada pelo Pico Jaraguá e pela Rodovia dos Bandeirantes, irônica por batismo.
Em uma cena sobre os protestos contra o PL 490, o filme recria o ocorrido usando fotos e vídeos captados pelos próprios protestantes somadas a um trabalho de som impactante. Essa mudança de perspectiva audiovisual em relação à representação homogênea simboliza o poder da Mostra protagonizada por realizadores indígenas e originários. Ao fim dessa sequência, o filme corta para o Pico: a natureza observa, impassível, o conflito que os homens travam por sua posse. Richard sobe na serra do Jaraguá para ver sua comunidade de cima, em mais um jogo de pontos de vista proposto pelo curta.
O sensacional Sukande Kasáká (Terra Doente), de Kamikia Kisedje e Fred Rahal, abre com um plano geral impressionante da destruição da terra pela soja, a perder de vista. Em meio ao campo, uma família encara o vazio do que antes fazia parte de sua aldeia. A partir da perspectiva de Kamikia (diretor e personagem) e Lewaiki, do povo Kisêdjê, o curta é um retrato íntimo da contaminação da natureza pelo agronegócio. “É invisível, mas a gente vê, a gente sente”. A opção por dois protagonistas enriquece o filme, permitindo que se desdobre em questões particulares a eles ao mesmo tempo que narram a história coletiva de sua comunidade.
A cena final demonstra um diálogo sofisticado entre roteiro, montagem e fotografia. Os dois personagens anunciam o resultado de um exame para identificação de químicos em suas terras, animais e águas. As dezenas de agrotóxicos e efeitos colaterais são enumerados enquanto assistimos cenas da comunidade em comunhão com a natureza, preparando seus alimentos, nadando no rio. É a confirmação de todos os temores apresentados pelo povo desde o início do filme, e as imagens reforçam como a destruição da qual eles são vítimas é completamente estrangeira ao seu modo de viver. O avô de Kamikia morreu, o pesar mobiliza a aldeia. Em breve terão uma cerimônia para encerrar o luto oficial da comunidade. Mas quando terminará o luto pela terra?
Aldeia Multiétnica - Território da Diversidade parte da experiência na Chapada dos Veadeiros para trabalhar a dialética de especificidades e similaridades das vivências dos povos originários por meio de entrevistas com lideranças e organizadores do evento. Partindo do seu surgimento em 2007, o filme traz reflexões de pessoas envolvidas no movimento a partir do contato com as diferentes comunidades. “O que significa ser indígena hoje? Como manter vivo o espírito dos nossos ancestrais?”. Essas perguntas levantadas pelas pelo filme poderiam ter sido exploradas de outras maneiras além da fala dos personagens.
A estrutura centrada em entrevistas tornou-se repetitiva e, na minha visão, diminuiu a força do longa, aproximando-o a um vídeo institucional de registro do evento. A cena mais rica se dá justamente num respiro das falas, durante o registro imersivo do processo de gravação de canções dos diferentes grupos. Dentro de uma oca, homens e mulheres se juntam com seus diferentes instrumentos, ritmos, línguas e técnicas vocais. As músicas se costuram com fluidez, servindo de metáfora para a ideia de cooperação entre os povos e reforçando o papel da comunicação na preservação da memória originária.
Ao montar o segundo programa da mostra, a curadoria gera uma discussão sobre a complexidade do vínculo dos grupos indígenas com seu território. Muito mais do que apenas seu local de moradia, as aldeias e seus arredores integram profundamente a cultura dessas pessoas. Há também nas três obras uma valorização do audiovisual e da comunicação como ferramentas para o registro da memória dos povos originários e o seu diálogo com outras comunidades. A provocação de Natália Tupi, da câmera como flecha, se faz presente nos três filmes. E para que essa flecha percorra maiores distâncias é essencial que os filmes sejam exibidos de maneira digna, nas mesmas condições que as outras duas mostras competitivas.
Minha câmera é minha flecha e Sukande Kasáká estarão disponíveis no site oficial do FICA até o dia 15/06/2025.
Sinopses:
Minha câmera é minha flecha | My camera is my arrow (BRA/SP, 2024, Doc, 18’, Dir.: Natália Tupi)
Richard Wera Mirim é um jovem Comunicador Indígena do Povo Guarani Mbya da Terra Indígena Jaraguá, território que ainda resiste às margens da Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo. O filme traz um pouco de sua trajetória, aliada à força do audiovisual e do uso das redes sociais na luta e resistência indígena. Mostra a câmera como uma flecha, uma ferramenta de comunicação poderosa, uma arma para registrar e retratar, com o olhar de quem vivencia a cultura, os conhecimentos, os territórios e demais aspectos dos povos originários pelo direito de existir.
Sukande Kasáká | Terra Doente | Ailing Land (BRA/MT, 2025, Doc, 30’, Dir.: Kamikia Kisedje, Fred Rahal)
Kamikia e Lewaiki, do povo Kisêdjê, são obrigados a abandonar sua maior aldeia após detectarem a contaminação por agrotóxicos, que envenena suas terras, rios e alimentos. Cercados por monoculturas de soja, eles lutam para proteger sua cultura, suas famílias e seu território, enfrentando um inimigo invisível que ameaça sua existência.
Aldeia Multiétnica - Território da Diversidade (BRA/GO, 2025, Doc, 70’, Dir.: Juliano George Basso, Lappa Amary, Pedro Guimarães, Ester de Maria)
O filme "Aldeia Multiétnica - Território da Diversidade" conta a história da idealização, construção e trabalho de continuidade a partir do encontro entre diferentes povos indígenas no território Aldeia Multiétnica.
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