Educador histórico na região do nordeste goiano e do sudeste tocantinense, Rosolindo Neto de Souza Vila Real, professor da Universidade Estadual de Goiás em Campos Belos, lançará no próximo sábado (23), o livro “Quilombo Kalunga: Cultura e Currículo Escolar”.
Embora tenha sido centrada numa abordagem etnográfica, isto é, que vai ao encontro de uma dada cultura, de uma comunidade específica e ali habita a convivência cotidiana por um tempo com a população tradicional, a obra não buscou aprofundar a cultura dos kalunga. Contudo, o autor tem consciência e assim referencia a imensa riqueza cosmológica deste pedaço da África brasileira instituída nas serras e colinas às margens do Rio Paranã.
Trata-se de um livro de educação que tem imenso impacto na formação de professores, contudo, também na resistência do povo quilombola em busca de uma educação cada vez mais potente e emancipatória para suas crianças, jovens e adultos.
“O livro que ora lanço traz à tona uma discussão atual sobre como se deve proceder didaticamente e metodologicamente na educação formal de uma escola de comunidade quilombola. Todavia, essa discussão não deve proceder de receitas prontas e acabadas, ela deve ser construída a partir das peculiaridades locais culturais de cada contexto. Pois de cada contexto emerge uma realidade com necessidades próprias”, destaca o autor.
Pesquisador da educação sob o paradigma da desigualdade, Luiz Marles dos Santos, Coordenador da UEG nesta região que também abarca, além do Sítio Quilombola Kalunga, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, enxerga na obra do seu colega, um instrumento teórico, mas também político para a mudança da educação local. Além disso, o gestor percebe na publicação mais um motivo de orgulho para o povo do nordeste de Goiás.
“A publicação desta obra é um marco histórico não somente na história do povo Kalunga, mas na vida de todos os povos que vivem nesta região. A UEG Unidade Campos Belos, sente-se honrada por ter mais um professor realizando o lançamento de um livro”, enaltece.
Considerado por Rosolindo Neto como um dos incentivadores para que ele publicasse a pesquisa, Adelino Machado, também professor da UEG, reconhece a importância da obra como um processo contínuo e como a denúncia de um evento inacabado. Para Adelino, a ausência histórica de investimentos mais rigorosos nas políticas públicas da educação quilombola no país adia a entrega constitucional de uma cidadania plena dos sujeitos de territórios e povos tradicionais.
“O livro, produto de pesquisa realizada há quase 3 décadas, continua atual e relevante à reflexão das reais condições pedagógicas e epistemológicas enfrentadas pela comunidade. Com inteligência, sabedoria e fundamentação, ele denuncia o autoritarismo dos projetos governamentais direcionados à educação do povo Kalunga”, reafirma.
O lugar de fala – e demarcação – dos quilombolas
Uma das pessoas que mais chamou a atenção de Rosolindo Neto quando realizava a pesquisa, ainda em seu mestrado, objeto que quase 30 anos depois se transforma neste livro publicado, foi Procópia do Santos Rosa, hoje com 90 anos de idade.
Liderança histórica do povo kalunga, em dezembro de 2022 foi agraciada com o título de Dra. Honoris Causa pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). E não é por acaso que esta honraria lhe chegou. Entre as diversas lutas de Procópia, está a educação que, para além de reivindicar prédios, estruturas e equipamentos, também queria professores bem formados, preferencialmente, as professoras saídas da própria comunidade. Porém, a matriarca kalunga vai além: participava ativamente da construção das diretrizes curriculares e do calendário da educação no território de seu povo.
Fato como esse é capturado oportunamente para os registros da memória da comunidade kalunga por meio da pesquisa de Rosolindo que, entre outras, traz na sua dissertação (agora publicada pela editora Appris) a importante fala de Procópia ainda em 1996, na qual a matriarca deixava claro que, além da valorização da cultura local, o currículo escolar kalunga deveria combinar também as formalidades exigidas pela sociedade em geral, como forma de preparar os educandos quilombolas para a sua inserção nos processos complexos da sociedade fora do território.
“Nós queremos que eles (os alunos) aprendam o que vir de fora (…) o que é nosso eles já sabem (…) nós também estamos querendo é o de fora (…) eu já não entendo, outros já não entendem, já os meninos entendem. De que adianta nós ficarmos sabendo só o que é nosso? Não adianta nada. (…) Veio o livro (a cartilha bilingue). (…) era para os meninos estudarem tudo aqui. Eu falei não (…) daqui eu mesmo já sei, eu mesmo posso ensiná-los”*, declarou a líder kalunga em entrevista para Rosolindo àquele momento.
É graças a lutas visionárias como esta de Procópia e outras lideranças kalunga que centenas de homens e mulheres deste povo conseguiram avançar nos estudos para concluírem graduações, alguns fizeram mestrados em diversas universidades do Brasil, e outros estão entregando seus doutorados. Todos estes, por onde passam com seus currículos, têm transformado suas vidas, da comunidade de origem e da sociedade em geral.
O que Rosolindo vem demonstrar é que, embora três décadas depois de concluída a sua pesquisa ainda falte muito por investir para garantia de direitos do povo quilombola, estes sujeitos coletivos conquistaram bastante avanços na educação frente aos períodos mais rudes de décadas atrás, e ainda avançarão muito mais.
A obra, “Quilombo Kalunga: Cultura e Currículo Escolar”, terá seu lançamento oficial no Centro de Lazer de Monte Alegre de Goiás, cidade a 35 km da UEG e 80 km da comunidade quilombola kalunga do Riachão, principal fonte da pesquisa que originou a obra, a partir das 20h.
*Nota: No discurso de Procópia que segue nesta matéria, por especifidade do gênero, fizemos a adequação à linguagem para a norma padrão do Português, entretanto, preservando fielmente o exato teor e sentido de suas palavras.
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Comunicação Institucional - Unidade de Campos Belos. Responsável: Marconi Moura de Lima Burum.