A Universidade Estadual de Goiás, nesta semana em que comemora seus 16 anos de existência, traz uma série de reportagens especiais sobre seus eixos norteadores: como a Instituição articula as demandas de ensino, pesquisa e extensão a um posicionamento ideológico de respeito pelas diversidades e pelos direitos humanos?
Desta pergunta advêm outras: como, em terra goiana, a UEG integra populações do interior à Capital, com um posicionamento ético de levar a educação às searas mais diversas do Estado? Quais são suas propostas educacionais e de pesquisa? Em que medida a Instituição se articula com a realidade produtiva de Goiás?
Para responder a essas questões – e em alusão a essa data festiva – a UEG traz aos leitores deste site (servidores técnico-administrativos, estudantes, professores, além de público externo) cinco reportagens especiais ao longo dos próximos dias. Todas elas, em maior ou menor medida, vão se dedicar às questões propostas acima, ora estimulando a discussão de algumas, ora de outras.
Neste primeiro texto, da lavra do repórter Fernando Matos, a Universidade se posiciona acerca de um tema que urge ser discutido: a necessidade de se repensar as formas de trote aplicadas historicamente no país aos calouros universitários.
A partir de uma posição institucional de defesa aos direitos humanos – e contrária a qualquer tipo de violência, seja física ou simbólica – , o leitor poderá acompanhar a história dos trotes em terra brasileira.
Vocês sabiam que a origem deste tipo de prática se relaciona a uma política higienista, por si violenta, aplicada a alunos oriundos do meio rural? Na França, eles deviam raspar os cabelos e assim havia, a um só tempo, a prevenção de piolhos e o estabelecimento de uma fronteira conservadora, e preconceituosa, entre o que era “rural” ( e que devia ser mudado) e o que era “urbano” (considerado o novo modo de vida a partir da Universidade).
Não se vê aí uma política simbolicamente violenta? Leiam! (Re)pensem este ritual!
Precisamos falar sobre Trote
“Disfarçados” de diversão, os trotes ocultam uma face violenta do ingresso na Universidade
Em 1831, revoltado com o tipo de recepção que os calouros recebiam na então Faculdade de Direito de Recife, Francisco Cunha e Meneses – calouro nesse ano – tentou deixar o local onde eram realizadas as “brincadeiras”. Foi interceptado por um dos veteranos e morto a facadas, no que é considerado o primeiro caso registrado no país. De lá para cá, passaram-se 184 anos e, desde então, se avolumam o número de registros desse tipo de prática a cada início de semestre nas Instituições de Ensino Superior brasileiras.
A prática de raspagem dos cabelos, que se estabeleceu ao longo dos tempos como sinal distintivo daqueles que ingressam no ensino superior, tem origem francesa e o seu objetivo era evitar a propagação de doenças: o que justificava também a queima das roupas dos ingressantes das Instituições.
No livro “A violência no escárnio do trote tradicional”, de Paulo Denisar Braga, o autor atesta que no início os trotes estavam relacionados diretamente aos estudantes que vinham do meio rural e as práticas se constituíam como uma espécie de batismo de entrada nesse novo mundo urbano. Elas consistiam em uma ruptura com o que representava seus locais de origem.
A aprovação no vestibular e a matrícula feita são o início de uma nova etapa no mundo acadêmico e deveriam ser momentos oportunos para estabelecer relações com os estudantes veteranos e entender a estrutura do ensino superior. Mas o que acontece é, em muitos casos, um pesadelo recheado de agressões físicas, verbais e psicológicas contra os novos membros da comunidade acadêmica.
Caso emblemático sobre a falta de limites e de relações de poder deturpadas foi o do calouro de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Edison Tsung Chi Hsueh, que em 1999 foi encontrado morto no fundo da piscina Instituição, após uma recepção de calouros. Forçado a entrar na água, mesmo não sabendo nadar, acabou por falecer e só teve o corpo encontrado na manhã seguinte, no que foi um dos mais chocantes casos recentes de trotes no Brasil.
O fato é que o trote foi naturalizado e se estabeleceu como “ritual de passagem”. Para Eduardo Oliveira, coordenador de assuntos estudantis da Universidade Estadual de Goiás (UEG), é preciso um pouco de cuidado com esse olhar condescendente sobre o trote. “Não se pode simplesmente encarar essa questão como mero marco de uma nova etapa, principalmente quando há violência envolvida”, observa.
Essas situações de violência não podem ser entendidas e justificadas como rito de passagem, sendo necessária uma discussão séria a respeito da questão. É o que também aponta Rezende Bruno Avelar, coordenador de Direitos Humanos e Diversidade da Pró-Reitoria de Graduação (PrG) da UEG.
Ele observa que a prática ganha ares de desforra, ou seja, de vingança. Os alunos veteranos que experimentaram situações adversas, irônicas ou vexatórias, à ocasião de suas entradas na Universidade, escolhem, por sua vez, vingar nos calouros o processo sofrido em seus tempos primeiros na Academia.
“Isso não deixa de ser uma forma de se exercer um poder, ainda que micro, mas que é muito revelador. Há um estranho e falso prazer em rir de quem se considera sujo, feio e passível de humilhação”, assinala.
A Eduardo e Rezende, faz coro o coordenador pedagógico do câmpus Henrique Santillo, em Anápolis, professor Flávio Alves Barbosa. Ele entende que as Instituições de Ensino Superior precisam estabelecer normas que impeçam a realização desse tipo de evento. Entretanto, os três fazem a ressalva de que essa parte legal é apenas um dos aspectos envolvidos nessa questão.
“É preciso trabalhar de forma ampla. Veja bem: só normas não resolvem a questão da violência, pois esta não se encerra apenas com punições. Isso quer dizer que os estudantes não devem cometer violência por medo de serem punidos, mas por entenderem que o respeito pelo outro é necessário”, pondera Eduardo.
Nesse sentido, o coordenador de assuntos estudantis da UEG enxerga como um avanço a reformulação das matrizes curriculares dos cursos da Instituição. De acordo com a nova proposta curricular, há um foco no indivíduo que estimula, além de aspectos próprios de suas formações, o empoderamento individual e a perspectiva cidadã.
Para o professor Flávio é precipitado, entretanto, assumir um possível aumento nos casos de trotes violentos nos últimos tempos. Para ele, o que mudou foi a dimensão que os casos tomam com o aumento das tecnologias de foto e vídeo.
“Veja bem, antes essas ações ficavam restritas aos locais em que ocorriam. Hoje, com um celular essas imagens ganham o mundo”, observa. Ele, entretanto, pondera que a forma como essas imagens são utilizadas perfazem uma relação paradoxal. Pois, ao mesmo tempo em que denunciam, são também utilizadas para escárnio e perpetuação da violência.
Nas redes sociais são inúmeros os exemplos de mobilização em torno da questão. É o caso da página “Chega de trote ofensivo”, no Facebook. Nela os participantes relatam casos de violências ocorridos em suas cidades ou instituições de ensino superior.
Segundo a descrição da página, os participantes são “contra os abusos cometidos nos trotes das universidades”, apoiando “os estudantes calouros para que eles não tenham seus direitos violados”. A página também estimula a promoção de ações solidárias ao invés de atitudes violentas (sobre como participar dessas campanhas de solidariedade na UEG veja as matérias "Responsabilidade socioambiental é foco de campanha que chega a todos os câmpus" e "Diversidade e interação compõem a recepção dos estudantes nos câmpus da UEG". )
Espaços similares proliferam em todas as redes sociais. Além desses espaços próprios para a discussão do tema, usuários em geral costumam postar denúncias de casos que lhes chegam. Isso inclui, além da violência física, casos que envolvam violência simbólica.
Para Rezende Bruno, é possível perceber essas manifestações como a reverberação no espaço acadêmico de uma problemática social maior. “A violência que se vê e se experimenta no dia a dia muitas vezes acontece também na universidade. Dentro da sala aula, nos espaços comuns e coletivos dos câmpus”, diz.
(Fernando Matos, CGCom | UEG)