Um estudo sobre as origens históricas da transferência da capital do Brasil para o Planalto Central
JARBAS SILVA MARQUES
No Jubileu do Cinquentenário da inauguração de Brasília como Capital da República, é mister que se recupere as origens históricas do movimento geopolítico pela transferência da capital do Brasil do litoral para o Planalto Central Brasileiro.
No auge de Portugal e Espanha como as duas maiores potências mercantilistas no Século 15, foi celebrado em 1494, o Tratado de Tordesilhas pelo qual convencionaram a divisão e o limite das terras descobertas. Por esse tratado, o Brasil Colônia obedeceria a uma linha iniciada no Pará até a atual cidade de Laguna, em Santa Catarina.
O convencionado pelos Reis da Espanha e Portugal não foram respeitados pelos bandeirantes e em 1736, o brasileiro Alexandre de Gusmão, secretário particular de Dom João V, Rei de Portugal, e que é considerado pelos diplomatas brasileiros como o “Avô dos Diplomatas”, antecedente ao Barão do Rio Branco, tido como o “Pai da Diplomacia Brasileira”, invoca o Ut possidetis para legitimar a conquista física feita pelas entradas e bandeiras.
A estratégia de Alexandre de Gusmão vai culminar com a assinatura do “Tratado de Madri”, em 1750, que revoga o Tratado de Tordesilhas e legitima as terras que somam 5.500 milhões de quilômetros quadrados e estendem as fronteiras brasileiras a dez países latino-americanos.
O primeiro fato a motivar a necessidade geopolítica de interiorizar a capital do Brasil Colônia se deu, primeiramente, com a invasão do Rio de Janeiro em setembro de 1710 pelo pirata francês Jean François Duclerc, que é derrotado e aprisionado por Bento do Amaral Coutinho. Menos de um ano depois, o corsário francês Almirante René Duguay Trouin sequestra a cidade do Rio de Janeiro e só dia 4 de novembro de 1711 abandona a cidade após receber 600 mil ducados de ouro, 100 caixas de açúcar e 200 bois.
Em 1729 — 18 anos após Duguay Trouin sequestrar a cidade do Rio de Janeiro, Dom João V, Rei de Portugal, nomeia dois jesuítas como “Geógrafos do Reino”, para definirem os limites dos territórios conquistados no Brasil, inspirado que foi pela ação de Alexandre de Gusmão.
Dom João V, nominado historicamente como o “Rei Magnânimo”, contratou geógrafos e cartógrafos italianos para complementarem os balizamentos dos matemáticos jesuítas, colocando-os sob a chefia e coordenação do coronel genovês Michelangelo Blasco. Nessa equipe fazia parte o geógrafo e cartógrafo Francesco Tosi Colombina.
Tosi Colombina elabora em 1749 o primeiro mapa do Planalto Central Brasileiro, tendo ainda a primazia de ter localizado e identificado as nascentes das três maiores bacias hidrográficas brasileiras no Planalto Central e que em 1947 foram nominadas por Antonio de Arruda Câmara e Guiomar de Arruda Câmara, membros da Missão Polli Coelho como “Santuário das Águas Emendadas”, que distam 45 quilômetros da Estação Rodoviária de Brasília.
Esse mapa de 1749 e outro de 1751 feito por Francesco Tosi Colombina serviram de inspiração ao Marquês de Pombal, antes mesmo do terremoto de Lisboa, para aqui no Planalto Central construir o que idealizou como a “Nova Lisboa”.
Nos “Autos da Devassa”" da Conjuração Mineira, abortada pela delação do português Joaquim Silvério dos Reis, no dia 5 de maio de 1789, ele disse “porque a Capital havia de ser na Vila Rica de São João Del Rei”. Tiradentes e seus companheiros após proclamarem uma república ali sediariam a capital.
Historicamente é a primeira vez que brasileiros pensam em interiorizar a capital do País, inspirados que foram no exemplo da Confederação Norte-Americana.
Em 1813, José Hipólito da Costa Furtado de Mendonça — Patrono da Imprensa Brasileira — publica no jornal “Correio Braziliense”, fundado e editado por ele em seu exílio em Londres, um artigo defendendo a mudança da capital do Império para o Planalto Central.
No dia 9 de outubro de 1821, José Bonifácio de Andrada e Silva — O Patriarca da Independência — redigiu aos deputados de São Paulo às Cortes de Lisboa a seguinte instrução: “parece-me também muito útil que se levante uma cidade central no interior do Brasil, para assento da Corte de Regência que poderá ser na latitude, pouco mais ou menos, de 15º...”
Na sessão de 9 de junho de 1823 da Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil, José Bonifácio apresentou “Memória sobre a necessidade e meios de edificar no interior do Brasil uma nova Capital”, dando-lhe ainda o nome de Brasília.
Em 1824 os revolucionários republicanos da Confederação do Equador tinham dentre outros propósitos o de “fundar, em lugar fértil, sadio e abundante d´água, uma cidade central para capital que, pelo menos, distasse quarenta léguas da costa do mar”.
O “Pai da Historiografia Brasileira”, Francisco Adolfo Varnhagen, em 1839 retoma e amplia as ideias de Hipólito da Costa e por quatro décadas sustenta a luta mudancista, até que em 1876, quando era Ministro-Plenipotenciário do Brasil no Império Austro-Húngaro, pela licença funcional e as suas expensas vem para o Planalto Central Brasileiro, onde percorreu por nove meses e balizou a localização da nova capital no triângulo compreendido entre as Lagoas Feia, Bonita e Mestre D’Armas.
Só em 1831, por iniciativa do deputado paraense João de Deus e Silva é encaminhada a primeira proposição em forma de projeto legislativo para a “escolha de um ponto central do país para a edificação da futura Capital”.
Por vinte anos, a luta mudancista esmaece no Poder Legislativo, até que, em 1852, o senador piauiense Holanda Cavalcanti, Visconde de Albuquerque, apresenta um projeto de lei que autoriza o levantamento de um terreno, nas latitudes entre 10 e 15 graus, para servir de território destinado à localização da futura “Capital do Brasil” entre os rios São Francisco, Maranhão e Tocantins.
No ano seguinte, o senador João Lustosa da Cunha Paranaguá, o segundo Marquês de Paranaguá, apresenta um projeto legislativo transferindo a capital do Rio de Janeiro para Monte Alto, no interior da Bahia.
De 1853 a 1889, a mudança da Capital, do litoral para o interior brasileiro, desaparece das discussões parlamentares, aparecendo, apenas, nas discussões e comícios dos clubes republicanos.
Na República
Com a derrubada de Dom Pedro II e a instalação do Regime Republicano, as lideranças positivistas fazem constar, nas primeiras discussões nas comissões da Constituição Provisória, a determinação da transferência da capital da nascente república.
O primeiro constituinte a se manifestar em plenário, em defesa da mudança, ironicamente, foi o deputado Thomaz Delfino, do Rio de Janeiro, destacando-se, ainda, nas sessões plenárias o senador baiano Virgílio Damásio e o deputado paraibano Pedro Américo, o Pintor.
Pedro Américo aduziu, em sua argumentação pela transferência, a questão moral, afirmando, em plenário, no dia 17 de janeiro de 1890: “É absolutamente necessário suprimir-se, quanto antes, a maléfica influência desta terrível cidade (Rio de Janeiro) tão saturada de elementos nocivos à vida moral da Nação que acostumou-se à contínua absorção, à endosmose intelectual do que se expande a antiga Capital do Império. Esses elementos influem, igualmente, sobre o Governo da União, pela pressão constante dos interesses puramente individuais e sobre todo o País, pela expansão incessante da corrupção em todos os sentidos”.
Coube ao senador baiano Virgílio Damásio o mérito de ter a iniciativa pioneira de apresentar à “Comissão dos 21” (que examinava o anteprojeto constitucional) uma emenda propondo a transferência da Capital.
A “Comissão dos 21” não aprovou a emenda do senador Virgílio Damásio e ele a reapresentou em plenário, propondo até que a nova capital se chamasse “Tiradentes”.
A emenda que originou o artigo 3º da Constituição de 1891, apresentada pelo deputado catarinense Lauro Muller e subscrita por 90 parlamentares, dentre os quais cinco goianos — os senadores Antônio Amaro da Silva Canêdo e Antônio da Silva Paranhos, e os deputados Joaquim Xavier Guimarães Natal, Sebastião Fleury Curado e José Leopoldo de Bulhões Jardim —, teve talvez a mais breve de todas as defesas em plenário: Lauro Muller falou apenas um minuto, deixando como justificativa de um terço dos constituintes, o documento elaborado pelo historiador e diplomata Francisco Adolfo Varnhagen, em 1877, e entregue ao ministro da Agricultura do Império. Nesse documento, Varnhagen, além de justificar a conveniência da mudança da Capital para o Planalto Central Brasileiro, indicava a posição que julgava ideal, situada hoje em Planaltina, Distrito Federal, e nos municípios goianos de Formosa e Água Fria.
Aprovada e promulgada a Primeira Constituição Republicana, o seu Artigo 3º dispunha: “Fica pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será, oportunamente, demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal”.
Mudancistas
Por uma questão de justiça histórica, desde a primeira constituição republicana, os militares brasileiros — no que trata da observância à constituição, em relação à mudança da Capital Federal — sempre emprestaram todo apoio à mudança. Floriano Peixoto nomeou Luiz Cruls e a Comissão que demarcou e delimitou o quadrilátero de 14.400 quilômetros quadrados no Planalto Central.
Prudente de Morais, o primeiro presidente civil, fez o inverso, desrespeitou o primado constitucional e sabotou orçamentária e administrativamente Luiz Cruls, para que ele não concluísse a segunda fase do trabalho.
Iniciava-se a Primeira República e a hegemonia do “café-com-leite”, e nem os políticos de Minas Gerais e de São Paulo queriam a mudança.
O único lugar do país onde a chama mudancista se mantinha viva era na então Santa Luzia, hoje Luziânia, sob a liderança agregadora de Evangelino Meireles.
Passaram, então, a formular ações políticas para reavivar o movimento e Americano do Brasil, recém-eleito deputado federal, apresenta um anteprojeto de lei que determinava a edificação no Planalto Central de um marco onde seria edificada a nova Capital do Brasil. O projeto foi aprovado e, no dia 7 de setembro de 1922, foi inaugurado o marco em Planaltina como comemoração do Centenário da Independência.
Como ações complementares, além da edição de jornais, Gelmires Reis, então intendente municipal de Santa Luzia, hoje Luziânia, fez um loteamento denominado Planaltópolis e distribuiu, em escritórios nas principais cidades brasileiras, “lotes para quem quiser morar onde será edificada a futura Capital Federal”.
Novamente, o “Movimento Mudancista” entra em declínio na frente parlamentar e, a partir de 1930, o “grupo de Santa Luzia” muda de tática e empresta o seu apoio à mudança da nova capital do Estado de Goiás. O deputado estadual Sebastião Machado, eleito por Santa Luzia, integra-se no bloco mudancista que apoia Pedro Ludovico, e Germano Roriz muda-se para a capital em construção, sendo o primeiro funcionário público federal de Goiânia e a primeira família da nascente cidade, sendo, ainda, o seu filho Goiany Segismundo Roriz, a primeira criança a nascer e a ser registrada e batizada na nova capital do Estado de Goiás.
Goiânia é, então, colocada pelo “Grupo de Santa Luzia” como alternativa para sediar a Capital Federal e a cumprir o dispositivo constitucional.
Vem a Ditadura do Estado Novo e Getúlio Vargas manda retirar da “Polaca” o Artigo 3º que vinha desde a primeira constituição republicana de 1891.
Com a democratização em 1946, morava no Rio de Janeiro, o advogado Segismundo de Araújo Mello — do Grupo de Santa Luzia — que passa a desenvolver juntamente com o deputado goiano Diógenes Magalhães, um trabalho de articulação política para reinserção do Artigo 3º da Constituição de 1891 junto à Assembleia Nacional Constituinte.
Promulgada a Constituição e eleito o presidente da República, Marechal Eurico Gaspar Dutra, ele cumpriu o primado constitucional: cria a comissão presidida pelo general Djalma Polli Coelho, para promover os estudos para a escolha do local a ser edificada a nova capital.
Inicia-se aí a luta entre os goianos — representados, na Comissão Polli Coelho, por Jerônimo Coimbra Bueno, o construtor de Goiânia — e pelos mineiros, capitaneados na comissão por Lucas Lopes e, na Câmara dos Deputados, pelos constituintes mineiros Juscelino Kubitschek de Oliveira e Israel Pinheiro.
Os mineiros pretendiam localizar a nova capital no Triângulo Mineiro, nas proximidades do delta do Rio Paranaíba, e o General Polli Coelho e Coimbra Bueno queriam-na no quadrilátero delimitado por Luiz Cruls, em 1892, no Planalto Central.
Por um voto, a Comissão Polli Coelho delibera que os estudos de Luiz Cruls e seus companheiros eram cientificamente corretos, aconselhando o presidente Eurico Dutra a transferir a Capital Federal para o Quadrilátero Cruls.
A campanha mudancista toma novo alento no Planalto com a ação vigorosa de Coimbra Bueno no Senado Federal e da bancada goiana na Câmara dos Deputados.
Com a eleição de Getúlio Vargas, passa a ser o chefe do seu gabinete militar o general Agnaldo Caiado de Castro. Vargas o nomeia para presidir a Comissão de Localização da Nova Capital Federal. O general Caiado de Castro contrata, então, a empresa americana Donald Belcher para fazer os mapas do levantamento aerofotogramétrico do Quadrilátero Cruls, feito pela Cruzeiro do Sul, a fim de que fosse o local para a edificação da Capital Federal.
Getúlio Vargas suicida-se e Café Filho, seu vice-presidente, ocupa a Presidência da República e nomeia, para substituir o general Agnaldo Caiado de Castro, o marechal José Pessoa. Este, acompanhado do seu ajudante-de-ordens, capitão Ernesto Silva, vem ao Planalto Central no dia 5 de fevereiro de 1955 e escolhe o Sítio Castanho, onde, hoje, está construída a Capital da República. Após a escolha do Sítio Castanho, o marechal Pessoa volta ao Rio de Janeiro e pede ao presidente Café Filho a edição de um decreto desapropriando terras e considerando-as de utilidade pública para a edificação da nova capital.
Café Filho, que era aliado da União Democrática Nacional (UDN), contrária à transferência, nega-se a baixar o decreto. O marechal José Pessoa embarca em um avião da Força Aérea Brasileira no Rio de Janeiro, no dia 29 de abril de 1955, em direção a Goiânia, para falar com o governador José Ludovico de Almeida e expor-lhe o impasse.
José Ludovico de Almeida recebe, em audiência, o marechal José Pessoa e o capitão Ernesto Silva e é sensibilizado pelo marechal para que o Estado de Goiás tomasse a iniciativa, senão a Constituição não seria cumprida e a capital não seria transferida.
O governador Juca Ludovico chama Segismundo de Araújo Mello, Jorge de Morais Jardim e outros assessores, que passam a elaborar o decreto que romperia o impasse.
Embora tivesse minoria na Assembleia Legislativa de Goiás, e a mensagem tivesse que passar por três votações, Juca Ludovico envia as mensagens que são aprovadas. Por cautela, a fim de evitar qualquer querela jurídica, o decreto foi assinado no dia 1º de maio de 1955, mas com a data de 30 de abril. Altamiro de Moura Pacheco é nomeado presidente da Comissão de Cooperação da Mudança da Capital Federal que iria promover as compras e as desapropriações e Segismundo de Araújo Mello, consultor jurídico.
Os goianos capitaneados por Juca Ludovico fazem a história avançar, e passam a preparar as condições objetivas, 26 dias antes de Juscelino Kubitschek ser interpelado por Antônio Soares Neto — o Toniquinho —, no seu primeiro comício de campanha em Jataí, “se cumpriria a Constituição e transferiria a capital para o Planalto”.
Eleito presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira no dia 18 de abril de 1956 assina a “Mensagem de Anápolis” dirigida ao Congresso Nacional, acompanhada de projeto de lei que tomou o número 2.874, sancionada no dia 19 de setembro de 1956 criando a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap).
No dia 3 de novembro de 1956 iniciou-se a construção das edificações administrativas da Novacap na hoje Candangolândia.
Com o lançamento do Concurso Nacional do Plano Piloto de Brasília, por Ernesto Silva, que presidia a Comissão de Planejamento, Coordenação e Mudança da Capital Federal, sagrou-se vencedor o urbanista e arquiteto Lúcio Costa no dia 16 de março de 1957.
No dia 20 de abril de 1957, partindo do marco colocado no ponto mais alto do Sítio Castanho, escolhido pelo marechal José Pessoa, Ernesto Silva e o então governador de Goiás, Bernardo Sayão, em 5 de fevereiro de 1955, o engenheiro Jofre Mozart Parada com sua equipe iniciou a demarcação do Eixo Monumental, fixando a Estaca Zero onde hoje está edificada a Estação Rodoviária de Brasília para então ser demarcado o Eixo Rodoviário.
No dia 21 de abril de 1960 o “Condutor de Sonhos” Juscelino Kubitschek de Oliveira inaugurava a nova capital da República, resgatando uma luta do povo brasileiro na manutenção e domínio da sua continentalidade e que foi a primeira cidade moderna listada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.
JARBAS SILVA MARQUES é jornalista, professor e historiador. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.