No Câmpus Central da Universidade Estadual de Goiás (UEG), em Anápolis, um conjunto de 80 caixas d’água de 500 litros cada, alinhadas lado a lado, chama a atenção logo à primeira vista. Elas compõem um dos principais experimentos do Centro de Excelência em Segurança Hídrica do Cerrado (Cehidra): os mesocosmos – estruturas que simulam lagos do Cerrado e recriam, em escala controlada, as condições naturais de corpos d’água do bioma. O objetivo é entender como a biodiversidade aquática reage a impactos ambientais e, principalmente, desenvolver técnicas para a recuperação da qualidade da água – uma das oito áreas de competência do Cehidra.
Nos mesocosmos, os pesquisadores testam desde os efeitos da poluição até o impacto das mudanças climáticas. Para simular o aumento da temperatura da água, instalam aquecedores ou lonas e acompanham como a biodiversidade responde ao longo do tempo. “Nosso objetivo é simular situações que ocorrem no mundo real e compreender seus efeitos. Perguntamos, por exemplo: se há um impacto, como o ambiente pode se recuperar? Se um poluente entra na água, quais consequências ele traz para a biodiversidade? Essas perguntas são investigadas em condições experimentais controladas, o que nos permite entender os impactos sem riscos ao ambiente natural", explica o prof. João Nabout, coordenador das atividades.
Entre as ações, há experimentos que simulam situações de estresse hídrico, como a entrada de poluentes ou fertilizantes em larga escala. Quando esses nutrientes chegam em excesso, aceleram a degradação da água, estimulam a proliferação de microrganismos e afetam diretamente a biodiversidade. O resultado é a perda da qualidade hídrica, com risco para o abastecimento e para a manutenção de espécies.
A equipe também testa técnicas capazes de reverter os impactos, entre elas as chamadas soluções baseadas na natureza. Um exemplo é o uso de plantas aquáticas (macrófitas) capazes de absorver nutrientes como nitrogênio e fósforo dissolvidos na água, geralmente provenientes de fertilizantes agrícolas e efluentes. “Esse é um exemplo experimental que a gente quer avançar a partir do Cehidra. Por exemplo: quais conjuntos de espécies podemos utilizar para recuperar determinado ambiente?”, destaca Nabout.
Cada caixa funciona como um experimento independente, permitindo observar fenômenos distintos em paralelo - desde a reação de microrganismos até a dispersão de poluentes. Essa metodologia sustenta um projeto que prevê a expansão dos mesocosmos para outras regiões do país, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do Programa Institutos Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação (INCT) Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade (EECBio), coordenado pelo prof. José Alexandre Felizola Diniz Filho, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A proposta é formar uma rede nacional que integrará áreas experimentais nas cidades de Belém (PA), Recife (PE), Natal (RN), Maringá (PR) e Porto Alegre (RS). Com isso, será possível realizar experimentos simultâneos e comparar como os ecossistemas reagem em diferentes regiões e condições climáticas. “Quem está à frente dessa iniciativa é o nosso grupo aqui da UEG, graças à expertise que construímos ao longo do tempo”, observa o prof. João Nabout.
Segundo o docente, a abordagem com mesocosmos já é consolidada internacionalmente, com redes articuladas de pesquisa na União Europeia e na América do Norte. No Brasil, apenas três áreas estão em operação, sendo a da UEG a única no Centro-Oeste. “Essa é uma área superimportante nesse contexto geográfico do Brasil. Coloca a UEG em uma abordagem de pesquisa experimental que ocorre no mundo inteiro”, ressalta. A implantação da área experimental da universidade foi viabilizada com recursos da Fapeg e do CNPq, reforçando o papel das agências de fomento no avanço científico. “As pesquisas que realizamos aqui só são possíveis graças ao apoio dessas instituições”, completa o professor.
Integração com novas tecnologias
O trabalho nos mesocosmos está diretamente ligado a outros laboratórios do Cehidra, como o de Biogeografia e Ecologia Aquática, localizado no Centro de Pesquisas e Pós-Graduação (CPPG|UEG), em Anápolis. Ali também são testadas novas tecnologias, como Inteligência Artificial (IA) e análises de DNA ambiental. Somado a projetos que utilizam drones para mapeamento de áreas hídricas, o Cehidra busca integrar ciência aplicada, experimentos em campo e inovação tecnológica.
Um dos exemplos é o desenvolvimento de softwares capazes de reconhecer automaticamente microalgas e outros microrganismos coletados durante os experimentos. “Esses organismos são de difícil identificação. Por isso, estamos utilizando inteligência artificial para apoiar esse processo. O sistema é alimentado com fotos e descrições e, depois, ao colocar a lâmina no microscópio, o software sugere a espécie, conta os indivíduos e estima até o tamanho deles. Todo o procedimento, entretanto, é acompanhado por supervisão humana, tanto na inserção dos dados quanto na validação dos resultados finais”, explica o prof. João Nabout.
O recurso acelera o monitoramento da qualidade da água e reduz custos, já que a presença de certos microrganismos pode impactar diretamente no tratamento e abastecimento, como é o caso da chamada floração de cianobactérias. O fenômeno ocorre quando há proliferação descontrolada desses organismos, favorecida por fatores como excesso de nutrientes, altas temperaturas e pouca circulação da água. Esse processo pode comprometer a qualidade hídrica, provocar mortandade de peixes e representar risco à saúde pública.
No Laboratório de Biogeografia e Ecologia Aquática da UEG, uma das frentes em andamento busca justamente aprimorar a identificação de espécies desse grupo. “A gente tenta fotografar o máximo de indivíduos da espécie para anotar as características e depois treinar o modelo para reconhecê-los. Assim, ao invés de depender exclusivamente do olhar humano, que é o método tradicional, estamos buscando otimizar o processo”, explica a pesquisadora Samiris Pereira da Silva, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado (Renac|UEG).
Conduzido por Samiris, um dos trabalhos em curso analisa uma cianobactéria (Chroococcus sp.) encontrada em 2024 na região de Aruanã, no rio Araguaia. Na ocasião, houve um episódio de mortandade de peixes, que levou a equipe de pesquisadores a coletar amostras de água para investigação. As análises apontaram densidade extremamente elevada da espécie ‒ um organismo que já ocorre naturalmente em ambientes aquáticos, mas que pode se multiplicar fora do normal quando há alterações físico-químicas, desencadeando a floração. “Estamos treinando o sistema para que, em futuros monitoramentos, essa estimativa de densidade seja feita de forma mais rápida”, completa Samiris.
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Área de mesocosmos e estudos no Laboratório de Biogeografia e Ecologia Aquática (CPPG|UEG), localizados no Câmpus Central, em Anápolis
(Comunicação Setorial|UEG)