Cleiber Marques Vieira
Especial para o Portal UEG
A resposta a essa pergunta poderia ser dada no final da discussão que será feita a seguir, entretanto, para evitarmos qualquer suspense não intencional: SIM! Nós deveríamos gastar mais tempo na aquisição de conhecimentos produzidos pela análise racional dos processos e fatos reais que nos rodeiam. Um tempo, no mínimo, igual aquele gasto com atividades mentais não científicas. E por quê" Vamos pensar em alguns aspectos gerais.
Os períodos de passagem entre um milênio e outro suscitaram, desde o início da história da humanidade, um turbilhão de questionamentos e novas interpretações de muitos dos dogmas que vêm conduzindo a estruturação, manutenção e divulgação das formas de pensamento do ser humano. O início do século XXI e, conseqüentemente, o rompimento do último milênio não fugiram dessa – quase – regra histórica. Esse período de transição tem sido marcado por um forte contraste entre as antigas concepções fundamentadas nos dogmas milenaristas (pelo menos do ponto de vista ocidental), tais como o “mito da criação divina”, “o mito do apocalipse”, entre outros, e as modernas concepções estabelecidas como resultado das metodologias e processos de construção do saber com base na ciência. É provável que, em nenhum outro momento histórico da humanidade, será possível identificar a convivência cotidiana do Homo sapiens com tantos avanços oriundos do seu desenvolvimento científico e tecnológico. Nunca a ciência esteve tão direta, ou indiretamente, presente no cotidiano das pessoas (mais especificamente, nas suas formas aplicadas). Até mesmo as pessoas menos informadas são influenciadas por mudanças produzidas pelo conhecimento científico.
É possível argumentar que nós humanos (exceto alguns povos que se mantêm estruturados política e sócio-culturalmente sob um regime primitivista em algumas regiões da Terra) literalmente comemos, bebemos, cheiramos, vestimos, voamos e corremos através da ciência (ou melhor, andamos, pois, nenhum mamífero do nosso grupo, exceto um guepardo, ou chita - Acinonyx jubatus -, pode atingir
A mente de todo ser humano que nasce nos dias atuais e, conseqüentemente, sua forma de construir a estrutura do conhecimento que servirá de base para a relação com o universo ao seu redor está imersa, consciente ou inconscientemente, num contexto onde a existência da ciência faz uma grande diferença. Apesar de quaisquer excessos que possam ser cometidos por uma concepção racionalista da vida (o que não reduz de nenhuma forma a subjetividade associada a cada ser humano, pois, ela nada mais é que a expressão da própria variabilidade genética e cultural), o principal traço que diferencia o Homo sapiens de qualquer outro animal que vive nesse planeta está ligado, diretamente, à capacidade que a espécie teve desde sua origem na Terra - aproximadamente 200 mil anos atrás - para criar formas complexas de compreender e influenciar o seu ambiente.
No início do nosso desenvolvimento, os grupos humanos pré-históricos apresentavam, provavelmente, um padrão parecido com aquele esperado para outros mamíferos: manutenção de pequenas populações capazes de subsistirem em ambientes, na maioria das vezes, inóspitos. É impossível discutir, de forma precisa, a origem do pensamento complexo do ser humano desvinculado da necessidade inicial dos grupos pré-modernos de compreender e manipular o ambiente, pois, a tecnologia – que em muitos aspectos serviu como base para o estabelecimento da cultura – foi o resultado histórico do acúmulo dessas experiências humanas no sentido de criar um mundo que atendesse às suas expectativas. É provável que o acréscimo rápido e constante de conhecimento que estamos observando nos últimos séculos crie, para as gerações futuras, uma impressão de obscurantismo na nossa capacidade atual de compreendermos as relações com o mundo em que vivemos, tal como a que experimentamos hoje quando pensamos nos grupos humanos primitivos. Logo, a negação, ou negligência, do conhecimento científico é, em última análise, a negação da própria história do conhecimento humano, ou talvez, a parte mais instigante de toda a história humana. E, não somente, porque é a parte sincronizada ao nosso tempo, mas porque nela têm sido geradas as maiores revoluções nas formas do ser humano compreender e interagir com o seu ambiente.
Uma demonstração óbvia dessa afirmação (e que deveria ser trivial e necessária em qualquer introdução sobre o papel da ciência, em qualquer nível de discussão) está associada, por exemplo, ao aumento da longevidade humana. Citando uma situação local, no início do século XX a expectativa de vida, em zonas urbanizadas do Brasil, oscilava em torno de três a quatro décadas para humanos adultos. O conhecimento produzido por estudos desenvolvidos, principalmente, nas áreas de parasitologia, imunologia, infectologia, genética médica, cardiologia e oncologia (para citar apenas aquelas áreas básicas, e aplicadas, mais associadas à saúde pública) estenderam esses limites para um intervalo que pode atingir o patamar de oito décadas (em média). É claro que podem ser discutidas todas as implicações políticas, socioeconômicas e/ou religiosas associadas a essa tendência, mas é indiscutível o valor e a importância da pesquisa científica nesse contexto, uma vez que é provável que qualquer um de nós procure um apoio técnico-científico sempre que se imponha uma situação de alteração grave da nossa saúde, ou de uma pessoa muito próxima.
Uma mãe (em pleno estado de consciência) poderá tentar a cura de quaisquer “pequenos” males do seu filho, tais como dores de cabeça, indisposições gerais, dores musculares, disfunções digestivas, alterações de estado emocional produzidas pelo estresse, utilizando-se de “técnicas alternativas” não-científicas. Entretanto, sempre buscará o auxílio técnico-científico quando o problema estiver relacionado com uma infecção crônica (produzida por um patógeno resistente, por exemplo), com uma disfunção congênita ou com tumores cancerígenos. É quase uma lição de filosofia popular “...quando a situação é menos séria serve qualquer tentativa, mas quando a coisa é séria chamem a ciência”. Esse padrão de conduta, ou postura, é até esperado (já que o ser humano é movido basicamente por necessidade), porém, parece bastante hipócrita que essa mesma mãe seja capaz de esquecer, ou até negar, o valor do conhecimento científico quando envolvida por argumentações esotéricas vazias ou pseudocientíficas.
Por mais psicológicos que sejamos a nossa “caixa de pensamento” (o cérebro) ainda é um invólucro, constituído por átomos, moléculas, tecidos, órgãos e uma infinidade de conexões nervosas que estão submetidas às mesmas leis naturais às quais está submetida a maior parte das estruturas que constituem a matéria - pelo menos a matéria macroscópica - do nosso universo. Apesar de acirrados debates entre teóricos de variadas áreas do conhecimento, tais como filosofia, teologia, epistemologia e história da ciência quanto à validade da secular discussão Kantiana sobre a dualidade mente-corpo (se a mente é resultado da atividade do próprio corpo ou se faz parte de algum processo fora da esfera material) avanços recentes das neurociências têm demonstrado que boa parte do nosso comportamento se expressa através de caminhos, ou vias de ação, que direta ou indiretamente estão influenciados pela estrutura biológica que constitui os nossos cérebros.
Não é necessário apelarmos para um determinismo biológico restrito. Nenhum cientista sério (principalmente após os longos, desgastantes e inócuos debates sobre a legalidade moral e ética da teoria sociobiológica) seria capaz de advogar a favor de uma base genética restrita associada ao controle do comportamento. Nem mesmo, defendendo a existência de um conjunto gênico invariável que controle todas as nossas ações (é bom lembrar que quando falamos “nossas ações” não estamos pensando somente nos seres humanos, mas em todas as espécies de animais e, especificamente, primatas com os quais nos aparentamos). A natureza altamente complexa das nossas relações com o ambiente já inviabilizaria um modelo tão simplista de explicação para o comportamento. Entretanto, parece bastante coerente – com base nos conhecimentos atuais sobre o funcionamento do cérebro, e conseqüentemente da mente humana – que as mesmas predisposições genéticas que estabelecem limites de variação para a expressão morfofisiológica, desde o início do desenvolvimento do nosso embrião, são aquelas que também estabelecem os limites para a expressão de determinadas tendências comportamentais que são influenciadas pela estrutura biológica dos nossos cérebros. Isso não quer dizer que existam genes específicos direcionando as nossas formas de agir, mas que ao escolhermos determinadas ações em detrimento de outras, quando submetidos a situações-problema do mundo real, não estaremos escolhendo (em média) a partir de um leque infinito de opções. Por mais lúdicos que possamos ser, parece lógico que essas escolhas serão feitas, necessariamente, dentro de limites de ação no mundo real que condicionam o funcionamento das estruturas morfológicas e da fisiologia dos animais. Por mais fascinante que possa parecer o sonho mitológico de Ícaro, nossa incapacidade de voar (assim como os limites pra nadar, correr, pular, de força física, de resistência à temperatura, pressão, insolação, etc.) não se deve a uma variação eventual de expressão do nosso livre arbítrio, mas sim ao fato de que todas as coisas materiais – tais como a água, as rochas, o ar, os organismos (plantas, animais, incluindo eu e você) – estão submetidos às mesmas leis físicas e químicas que afetam toda a matéria, provavelmente, em qualquer parte do universo. O efeito gravitacional que torna impossível a levitação espontânea de animais pesados tais como humanos, elefantes ou baleias, parece se expressar da mesma forma em qualquer parte do universo, onde as condições sejam semelhantes, independentemente, se o referencial teórico adotado seja “newtoniano” (mundo meso) ou “einsteiniano” (mundo macro). Esse e outros fatos óbvios, decorrentes da nossa existência nesse planeta, tornam necessária a compreensão racional do mundo que nos rodeia. Basta que gastemos alguns minutos pensando neles.
Por acaso, a ferramenta mais poderosa concebida pela mente humana para esse fim (e que vem sendo produzida pela gradativa acumulação, análise e seleção de informações nos últimos três séculos) é a ciência. Daí a necessidade de se compreender o seu significado, forma de funcionamento e, principalmente, a sua real distinção de outras formas de produção de conhecimento criadas pelo homem ao longo de sua história, tais como a filosofia e a religião. É esperado, naturalmente, que as atividades lúdicas estejam sempre presentes no nosso cotidiano. Entretanto, elas deveriam fazer um papel complementar naquilo que constitui a manutenção da nossa história e das nossas tradições e não uma forma alternativa de interpretação dos fenômenos naturais, que substitua uma postura analítica e racional. Citando o renomado astrofísico Carl Sagan (popularmente, conhecido pelo seriado de televisão COSMOS) “...devemos permitir que nossa mente levante vôos para a imaginação, contudo, eles devem ir até o ponto em que a nossa cabeça não role dos nossos ombros”.
Um raciocínio científico basal deveria ser uma postura natural dentro das nossas culturas modernas. Em meio a uma onda crescente de movimentos que prometem “felicidade eterna e cura para todos os males” por um baixo custo (baixo investimento intelectual e financeiro), uma postura científica parece ser o melhor dos antídotos para o charlatanismo. Quanto mais, e mais cedo, as nossas crianças aprenderem a raciocinar de forma objetiva, a respeito dos fenômenos naturais que as envolvem, maiores serão as chances de que elas cresçam imunes às iniciativas desonestas com as quais terão contato no futuro.
Por isso mesmo, espera-se que a universidade tenha um papel fundamental nesse sentido. Não apenas como ambiente de pesquisa, mas também, como um ambiente de contínua discussão e reafirmação do importante papel da ciência para a sociedade moderna. Eu acredito que o ambiente acadêmico até possa servir como espaço para a discussão de assuntos relativos às políticas públicas, a ética, a filosofia (e até a religião), entretanto, como seria interessante se na maior parte das vezes os anúncios, ou “banners”, espalhados pela universidade estivessem nos convidando para discutir um pouco mais sobre ciência pura, ciência de base ou sobre filosofia da ciência. Quando isso ocorrer de forma crônica (como um perfil da instituição), provavelmente, estaremos mais próximos dos grandes centros de ciência e de tecnologia.
O Profº Dr. CLEIBER MARQUES VIEIRA é um dos pioneiros do curso de biologia da UEG. Foi um dos primeiros professores biólogos do quadro de docentes do Departamento de Biologia, tendo ingressado na Universidade em 1993, época da UNIANA. É graduado em Biologia, pela UFG, fez o seu mestrado