O que vem ocorrendo, é que o atual regime de acumulação – o regime de acumulação integral, fundado no neoliberalismo, no toyotismo e no neo-imperialismo – está morrendo
Nildo Viana
Especial para o Portal da UEG
A crise financeira norte-americana possui raízes bem mais profundas do que parece à primeira vista, bem como conseqüências sociais bem mais graves do que aparenta. O processo em curso atualmente não é um acontecimento extraordinário que emerge por razões casuais, mas é decorrência de um processo histórico e um conjunto de determinações mais amplas, cuja aparência pode enganar.
Há uma quase unanimidade em explicar a crise financeira norte-americana pelo aumento da taxa de juros para combater a inflação. Mas existem explicações um pouco diferentes, pois para os neoliberais mais conservadores, a crise é explicada pela intervenção estatal que geraria garantias e confiança fictícias. Há também aqueles, à esquerda, que colocam a crise de sobreacumulação como causa ou então os ciclos econômicos capitalistas, que, para alguns destes, gerariam (ou, para outros, já geraram) uma crise do capitalismo.
Em que pese exista momentos de verdade em todas estas análises, em sua totalidade e em si mesmas, são equivocadas. Uns enfatizam os “fatores estruturais” e outros os “conjunturais”, não percebendo que estão entrelaçados. Daí uns enxergam aproximação da “crise final do capitalismo” e outros “crise passageira”, com as abordagens intermediárias. As conseqüências poderiam ser a guerra e o colapso do capitalismo, gerando mais pobreza, conflitos, destruição e nova onda de guerras, na concepção mais estrutural enquanto que na concepção mais conjuntural, seriam falências, aumento da inflação, etc., que poderiam ter impacto maior ou menor, dependendo das medidas estatais e outras ações no mercado mundial para conter este processo.
O processo está ligado a uma característica permanente do capitalismo, que é a tendência declinante da taxa de lucro. Esta tende a se aprofundar cada vez mais com o desenvolvimento histórico do capitalismo, mas este cria contratendências e busca desacelerar este processo. O desenvolvimento tecnológico e o acúmulo cada vez maior de trabalho morto (meios de produção, trabalho materializado em mercadorias) são as principais causas desta tendência. A intervenção estatal, o aumento de produtividade, a captação de recursos externos via exploração internacional, o aumento da massa de lucro, são as principais estratégias para se combater o seu aprofundamento e aceleramento. A resistência nacional contra a exploração internacional e a pressão dos trabalhadores e outros setores sociais são os principais obstáculos para tal realização. A cada época do desenvolvimento do capitalismo, se instaura um regime de acumulação que cristaliza uma determinada formação estatal, relações internacionais e organização do processo de trabalho, que lhe caracterizam e apresentam as formas existentes de combater esta tendência declinante da taxa de lucro médio.
O que vem ocorrendo, é que o atual regime de acumulação – o regime de acumulação integral, fundado no neoliberalismo, no toyotismo e no neo-imperialismo – já não está conseguindo conter esse processo, o que conseguiu relativamente nos anos 1980 e principalmente nos anos 1990, que foi o seu período de auge. Agora, há indicadores de que o regime de acumulação integral inicia o seu processo de declínio. O aumento da taxa de lucro médio nos anos 1990 vem sendo substituído pelo declínio a partir do ano 2000.
A grande questão é que a queda da taxa de lucro médio tende a produzir efeitos inflacionários crescentes e outras determinações aprofundam tal tendência. A inflação tende, com o aumento dos preços, a restringir parte do mercado consumidor. Porém, uma das estratégias voltadas para diminuição da tendência declinante da taxa de lucro é aumentar a massa de lucro, ou seja, produzir cada vez mais mercadorias e vendê-las, o que cria a necessidade constante de aumento do mercado consumidor. O novo regime de acumulação contribui com o aumento do mercado consumidor em alguns setores, mas diminui o consumo da camada mais empobrecida da população, afetada pelo desemprego e outros processos paralelos.
Umas das formas de manter um mercado consumidor é o sistema de crédito, que cada vez mais fica presente na vida cotidiana das pessoas desde o final da Segunda Guerra Mundial. O sistema de crédito permite o consumo mesmo para aqueles que não possuem recursos financeiros imediatamente.
Este conjunto de elementos ajuda a compreender a crise financeira norte-americana e seus desdobramentos mundiais, bem como suas conseqüências. No final dos anos 1990, houve uma expectativa elevada com a emergência das empresas ponto.com (empresas da internet como a Amazon, por exemplo) em relação a elas, o que gerou diversos investimentos que, no entanto, não tiveram prosseguimento e em 2000 tais empresas entraram
Houve, assim, uma expansão do setor imobiliário. Neste contexto foram criados os chamados “títulos rastreados” e o nicho de mercado composto pelo “subprime”. Isto criou o que os economistas chamam de “bolha”: os preços sobem e valorizam o mercado imobiliário, tornando-o fonte de investimento. As hipotecas passaram a ser refinanciadas pelos mutuários, que passaram a receber dinheiro extra dos bancos. Os bancos criaram títulos lastreados em hipotecas, ou seja, que estariam garantidos por elas, e venderam no mercado para investidores que também os revenderam.
Esta valorização aumentou a demanda por novas hipotecas por parte da população, já que se tornou uma forma de adquirir dinheiro. Neste bojo, um novo nicho de mercado foi explorado, o subprime, composto por pessoas de mais baixa renda, maior grau de inadimplência e risco, mas proporcionando maior retorno. Com a queda da taxa de lucro a partir dos anos 2000 se criou uma constante pressão inflacionária que convive com a necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor, o que foi realizado, nos EUA, no caso da crise das empresas ponto.com.
Em outras palavras, se resolveu o problema do mercado consumidor, mas não o da inflação, que continuava pressionando, e com o passar do tempo tende a se tornar mais forte, a não ser se houvesse uma ampliação da taxa de lucro médio e/ou outras determinações do processo inflacionário fossem reduzidas ou eliminadas. Porém, isto não aconteceu e a pressão inflacionária continuou, forçando o Estado norte-americano a aumentar a taxa de juros para impedir seu crescimento. A valorização dos imóveis, com o aumento da taxa de juros, começa a perder fôlego e provocar desvalorização.
A conseqüência disto é a inadimplência, a perda do valor das hipotecas e tudo o que se alastrou em sua decorrência, atingindo o capital bancário, que entrou
Assim, a integração mundial do capitalismo e a interdependência financeira provocam um processo de irradiação da crise financeira norte-americana e isto tende a se intensificar com o agravamento da situação nos EUA. O Estado neoliberal abandona seu programa ortodoxo e passa a intervir cada vez mais, o que é uma necessidade atual. Esta intervenção poderá ser mais ou menos eficaz. Se for mais eficaz, poderá conter a crise nos marcos de uma crise financeira com conseqüências muito graves nos demais setores; se for ineficaz, tende a abrir a possibilidade de uma crise do regime de acumulação – que pode se tornar uma crise global do capitalismo. É claro que isto não depende apenas do governo norte-americano, mas ele é um dos principais agentes nesse processo.
As conseqüências da crise nos EUA são as já visíveis, desde a quebra de bancos até a queda do consumo e do nível de vida da população, e, caso não seja contida, diminuir consideravelmente o mercado consumidor e, por conseguinte, o desemprego e o setor comercial e industrial, entre outros, criando uma bola de neve que deve atingir vários outros países. Isto é mais grave tendo em conta que os EUA têm 5% da população mundial e que seu consumo, no entanto, é de 19%, ou seja, é uma fatia importante do mercado consumidor mundial.
As conseqüências nos demais países podem ser as imediatas, já visíveis, tal como a reprodução da crise financeira em outros países, e seus efeitos imediatos, até a reprodução de suas conseqüências possíveis e mais a longo prazo. Os bancos europeus já foram parcialmente atingidos e os governos europeus também não pouparam esforços para salvá-los. Alguns países são atingidos mais fortemente e rapidamente do que outros, mas, de uma forma ou outra, todos acabam sendo atingidos.
No caso brasileiro, os reflexos da crise norte-americana são, a curto prazo, um pouco menores, já que o entrelaçamento direto com os elementos responsáveis pela crise americana praticamente não existem, mas ocorrerá, sem dúvida, dificuldade de empréstimos, entre outras conseqüências. Porém, com o desdobramento da crise para outros setores ou a própria ampliação da crise financeira, tende a atingir o Brasil de forma cada vez mais intensa, o que ocorreria também em escala mundial. Isto ocorrendo significaria aumento da pobreza, desemprego, conflitos, violência, criminalidade, em escala ampliada e mais intensa do que já existe. De qualquer forma, o desaquecimento do crescimento deverá ocorrer, em maior ou menor grau, bem como isto tende a acelerar e ampliar devido à situação já desfavorável da acumulação de capital a nível mundial.
Estas conseqüências sociais, no entanto, tendem a promover reprodução de outras conseqüências sociais. A desaceleração do crescimento, o aumento dos juros, etc., tendem a aumentar o desemprego e a pobreza, que já estão em limites insuportáveis em alguns países. A fome mundial já ultrapassa a cifra dos 900 milhões de pessoas, e o desemprego já atinge uma parte considerável da população mundial. A crise financeira provocando a ampliação deste processo, tende a gerar uma situação social cada vez mais insustentável.
Os EUA já vivem uma situação de alto grau de desemprego, problema de moradia, pobreza, bem como diminuição do poder aquisitivo de grande parte da classe média, o que vem se intensificando. Isto gera novas conseqüências: aumento da criminalidade, violência, repressão policial, conflitos. A população carcerária no mundo, que teve um crescimento assustador a partir da década de 1980, poderá aumentar drasticamente. As revoltas sociais, neste contexto, tendem a se tornar cada vez mais constantes e radicais. A fome no continente africano provoca inúmeras revoltas e, num contexto de aprofundamento da crise, tende a se tornar mais intenso e atingir cada vez mais países. O aumento da repressão estatal, por sua vez, provoca ainda mais conflitos, num espiral ascendente. Logo, as principais conseqüências sociais da crise financeira são, caso seja contida, aumento da pobreza, desemprego, miséria e conflitos, e, caso não seja, emergência de extremismos, revoltas e a possibilidade de um reaparecimento de guerra regimes ditatoriais ou de revoluções sociais. Além disto, mudanças culturais tendem a ocorrer, tal como o recuo da ideologia neoliberal mais ortodoxa e a perda de sua hegemonia, e o avanço da cultura contestadora (marxismo, anarquismo) e, como sempre, intelectuais mudando de lado ao sabor da moda ou da conjuntura.
Porém, a crise financeira tende a ser tornar crise geral e isto terá conseqüências muito mais profundas. Para evitar isto, os estados nacionais (que nunca tiveram fim apesar do discurso ideológico do “fim do estado-nação”) vão ter que aumentar o controle do sistema financeiro e promover várias políticas para conter a crise e seus desdobramentos. O fundamental, do ponto de vista dos governos nacionais, deverá ser evitar que a crise financeira passe a ser uma crise do regime de acumulação. Porém, dependendo de outras determinações e dos demais agentes sociais envolvidos, mesmo as medidas mais drásticas e eficazes poderão fracassar. Assim, o futuro tem tendências e qual delas irá predominar vai depender as ações sociais e das opções que os seres humanos tomarão, reforçando a resolução da crise, o seu aprofundamento ou, como luz no fim do túnel, a transformação social, o que significaria a constituição de novas relações sociais nos quais os seres humanos e seu destino não fiquem na dependência dos detentores do capital.
Nildo Viana, sociólogo, filósofo, professor da UEG; Doutor em Sociologia/UnB; autor de vários livros, entre os quais O Capitalismo na Era da Acumulação Integral (São Paulo, Idéias e Letras, 2008, no prelo); Estado, Democracia e Cidadania (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003); A Esfera Artística (Porto Alegre, Zouk, 2007); Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas (Bauru, Edusc, 2008); A Consciência da História (Rio de Janeiro, Achiamé, 2007) .