Por Anna Carolina Mendes
Você se lembra da história contada por sua mãe ou familiares sobre como ela deu à luz você? É provável que tenha médico ou enfermeira citados, e que a ambientação seja um hospital ou maternidade. Caedere é a raiz etimológica latina de onde surgiu a palavra cesariana e que significa corte, cortar. Não existe consenso sobre a época de surgimento do procedimento, mas o que sabemos é que a forma como a mulher parturiente dá à luz modificou-se muito ao longo dos anos. Em tempos remotos, a maioria dos partos eram domiciliares, feitos por parteiras, com a mãe da parturiente ao seu lado. Hoje, esse cenário é diferente.
Dos 2,7 milhões de partos em 2017 no Brasil, a cesariana ocorreu em 41,9% dos casos contra 58,1% de partos normais na rede pública, segundo mapeamento do Ministério da Saúde. Na rede privada, o número de partos por cesárea é ainda maior. Criado com o objetivo de diminuir a mortalidade da mulher parturiente e do feto com risco de morte, a cesariana foi banalizada e agora não é realizada apenas em último caso. Existem várias iniciativas que tentam diminuir o índice de partos por cesárea e aumentar o número de partos normais. O Ministério da Saúde criou, em 2018, o projeto Parto Cuidadoso, que visa capacitar enfermeiras obstétricas e obstetrizes a realizarem o parto normal.
Projeto de formação de doulas
Existe um movimento de resgate do parto normal como primeira opção para as parturientes e de conscientização da importância da divulgação do procedimento natural, que traz menos riscos à mulher. Nesse sentido, a doula, figura que atua como suporte físico, emocional e psicológico para a parturiente e com a utilização de métodos não-farmacológicos para o alívio da dor, é de extrema importância no parto normal. Com o projeto de doulas chamado Oxum, a professora Thallita de Freitas Ramos, do curso de Enfermagem do Câmpus de Ceres da Universidade Estadual de Goiás (UEG), propõe a capacitação de futuras enfermeiras para atuar como doulas, principalmente no ambiente do Sistema Único de Saúde (SUS). O nome do Projeto faz menção à orixá Oxum, protetora das gestantes e a quem as mulheres yorubanas recorrem na gestação e no parto.
Ativista da humanização no parto desde que ficou grávida pela segunda vez, Thallita conta que, quando descobriu a doula, não teve dúvidas de que toda mulher merece esse tipo de profissional no auxílio da gestação. Desde então, passou a orientar suas alunas do curso de enfermagem na área de saúde da mulher e obstetrícia a agregarem o trabalho da doula. Unindo experiências pessoais e conhecimento científico, a professora acredita que "É preciso mudar o modelo 'medicalocêntrico' de fazer saúde, e é no ambiente acadêmico que temos a chance de formar enfermeiros capacitados a atuarem de forma humanizada e baseada em evidências, que enxergam as doulas como aliadas e não inimigas".
É preciso mudar o modelo ‘medicalocêntrico’ de fazer saúde, e é no ambiente acadêmico que temos a chance de formar enfermeiros capacitados a atuarem de forma humanizada e baseada em evidências, que enxergam as doulas como aliadas e não inimigas.
A ideia de realizar o projeto de doulas surgiu da observação de Thallita sobre a atuação profissional de enfermeiros que, com o tempo, passa a ser mais mecanizada. Para ela, o curso de doulas resgata a observação com atenção dos profissionais. Ela conta que o modelo de saúde brasileiro ainda é muito intervencionista e, de certa forma, paternalista. "Aos poucos, estamos conseguindo desconstruí-lo, formando profissionais atentos aos processos fisiológicos característicos de cada fase da vida, bem como aptos a desenvolver seu trabalho com a autonomia que a enfermagem precisa", afirmou a professora.
Fatores de risco
O parto por via cesárea é essencial em casos de complicações que trazem risco para a vida da mulher ou do feto. A cesariana programada, contudo, não ocorre mais somente quando há riscos: banalizou-se na cultura de parturientes e da comunidade médica. De acordo com a Declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre Taxas de Cesáreas, taxas maiores que 10% não significam redução de mortalidade materna ou neonatal, e o alto índice de cesáreas praticados no Brasil (41,9%) aponta para a utilização de cesárea em casos em que não é necessária.
No mesmo documento, a OMS apresenta os fatores de risco de cesáreas sem necessidade, que podem causar sequelas permanentes e morte, principalmente se realizadas em locais sem infraestrutura adequada para tratamento de complicações pós-operatórias. Além disso, existe o risco de bebês nascerem prematuros, o que, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), um de seus principais causadores é a cesariana programada.
"A gente tem aquela ideia que parto normal é sofrimento, é dor, é desconforto, é algo terrível que pode levar consequências para o bebê e para a mãe. A doula vai preparar a mãe para conseguir ter esse parto da melhor maneira possível", afirma Jaciele Aparecida Alcântara, aluna de Enfermagem do Câmpus de Ceres e que faz parte do projeto de doulas. Ela explica que existe um movimento de retorno do parto humanizado, tentando resgatar o parto como era realizado antigamente, em detrimento da cesárea. Mas ela não descarta que existem riscos mesmo na forma natural de dar à luz. Entre eles, está o aumento do risco de ruptura do útero em mulheres que tiveram seu primeiro parto de cesárea e têm a cicatriz. Isso ocorre devido ao comprometimento da musculatura do útero. Nesses casos, é necessário o esclarecimento do risco à mulher para que possa escolher ter segunda cesárea ou optar pelo parto normal.
A gente tem aquela ideia que parto normal é sofrimento, é dor, é desconforto, é algo terrível que pode levar consequências para o bebê e para a mãe. A doula vai preparar a mãe para conseguir ter esse parto da melhor maneira possível.
Conhecimentos tradicional e científico
A doula remonta a um resgate da forma tradicional de realizar partos, mas existem diferenças cruciais entre o trabalho da doula e o da antiga parteira. Para começar, são funções diferentes. Diferente da obstetrícia e parteria atuais, que utilizam saberes tradicionais aliados a evidências científicas, a parteira aprendia de forma empírica. "A doula não faz certos procedimentos que a parteira fazia, como por exemplo, aparar o recém-nascido, cortar o cordão umbilical e ajudar a saída da placenta", explica a professora Thallita.
Atualmente, a profissão de doula ainda não é regulamentada. Ela é reconhecida como ocupação e está registrada na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). O projeto de Lei Federal das Doulas ainda está em fase de tramitação no Congresso Nacional. "A OMS e o Ministério da Saúde nos reconhecem como agentes importantes para a equipe obstétrica, portanto, acredito que em breve estaremos regulamentadas", afirma Thallita.
Depressão pós-parto
Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres parturientes é a depressão pós-parto. Vários fatores estão relacionados a esta condição após o parto, mas experiências de parto negativas estão entre as principais causas. Um parto com elementos estressores, como a falta de contato pele a pele entre a mãe e o bebê, a ausência de aleitamento materno nas primeiras horas de vida e práticas invasivas, dificultam a adaptação da nova mãe e bebê, aumentando os riscos de depressão pós-parto. É natural a mulher perder certa parcela de seu senso de identidade neste período, no processo de se reconstruir como uma nova mulher-mãe, e a doula reconhece essa dificuldade, facilitando a entrada da mulher na nova fase.
Práticas integrativas e complementares conseguem alavancar a chance de adaptação sem grandes sustos da nova mãe. Além do auxílio emocional, psicológico e de alívio de dores, a doula ampara toda a família, entendendo suas necessidades para que o parto da mulher seja positivo. A doula é como uma porta-voz das necessidades da mulher e defensora de sua realidade fisiológica para um parto humanizado. Segundo Thallita, o trabalho da doula começa antes do trabalho de parto, devolvendo a autonomia e a confiança no poder da mulher de parir e de acreditar no próprio corpo. "Nós as lembramos do próprio poder e ajudamos a aliviar dores, a alimentamos e amparamos, cuidamos do ambiente para que ela tenha tudo que necessita e possa se concentrar no próprio corpo, resgatando seu empoderamento", propõe a professora.
Resistência médica
Mesmo com todos os benefícios da utilização de doulas, ainda se encontra resistências para sua atuação no parto. Para Gilberto de Matos Filho, médico e diretor clínico da Maternidade Nascer Cidadão (MNC), em Goiânia, o estilo de medicina que se tem hoje, a formação médica e os fatores estruturais da medicina interferem na preferência pela cesariana. "Nós lutamos contra isso aqui na MNC, mas há muita resistência. Muitos médicos não gostam de ser questionados, acham que as doulas atrapalham na condução das atividades", alegou Gilberto.
Para a professora Thallita, os maiores entraves para a aceitação plena das doulas são os mitos propagados a respeito do trabalho desempenhado por elas, como a crença de que doula faz toque vaginal e ausculta de batimentos cardíacos fetais, o que não ocorre, pois são procedimentos técnicos que as doulas não exercem. "Outro aspecto é o de que servimos como ponte para informações a respeito do protagonismo da mulher como dona do próprio parto, e ela passa a questionar certas condutas desatualizadas ou sem qualquer evidência, 'forçando' a equipe a sair da zona de conforto", declara Thallita. Para a aluna de enfermagem Jaciele, existe muita desinformação, principalmente nos locais onde a população de doulas é escassa, como no interior de Goiás. "Queremos ser vistas como profissionais da saúde e como acompanhantes que estão ali para prestar um serviço para o qual foram qualificadas e atestadas", contou a aluna.
Em busca do parto humanizado
O trabalho da doula inclui auxiliar a mulher a encontrar sua força fisiológica e acreditar nessa força, convencê-la que é capaz de parir e que seu corpo consegue realizar o parto de forma natural. Geralmente, quando ouvimos falar em violência obstétrica, pensamos logo no parto por cesárea. Mas não é só na cesariana que ocorre violência, pois nem todo parto normal é humanizado."O parto humanizado é aquele em que se respeita o momento da família nascente, a fisiologia do processo e, principalmente, seus desejos e possibilidades, nunca se esquecendo de que é preciso consentimento da parturiente para possíveis intervenções", explica Thallita. No Estado de Goiás, a Lei n° 19.790, de 17 de julho de 2017, trata sobre violência obstétrica e categoriza este tipo de violência, que envolve condutas realizadas por médicos, equipe do hospital, doulas, ou acompanhantes e familiares.
De acordo com a Lei, é considerada violência obstétrica ações que ofendam de forma física ou verbal mulheres gestantes, em trabalho de parto ou pós-parto. Dentre as condutas, estão: tratar a parturiente de forma agressiva, grosseira ou irônica, que a faça sentir mal pelo tratamento recebido; ironizar ou recriminar comportamentos das parturientes, como gritar, chorar ou sentir medo; tratar a mulher de forma inferior e recriminar suas características físicas; fazer a parturiente acreditar que precisa de cesariana quando não é necessária, valendo-se de riscos imaginários e hipotéticos.
Os desafios para o resgate do parto normal humanizado são grandes, mas tem na doula uma das principais aliadas. "Este resgate da mulher como dona do próprio parto tem, na figura da doula, um meio de percepção daquela mulher e daquele bebê como seres humanos dotados de saberes e vontades, auxiliando muito no processo de humanização do nascimento", propõe Thallita.