Investigador integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS-20/UC), o professor português Paulo Archer de Carvalho veio ao Brasil e à UEG para ministrar o Seminário “Republicanismo, Ética Republicana e Globalização” no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Território e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) e conversou com a equipe de jornalismo do CeCom.
Na entrevista Paulo Archer falou sobre a república em tempos de globalização, direitos humanos, corrupção e ainda sobre a parceria internacional entre o CEIS-20 e o TECCER.
Paulo Archer é doutor em Letras pela Universidade de Coimbra, com pós-doutorado em História da Cultura Contemporânea pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX. Além disso, é licenciado em História e graduado em Direito.
No CEIS-20, Archer é responsável pela linha de pesquisa Genealogia e modalidades dos discursos intelectuais. Ele também desenvolve pesquisas nas áreas e temáticas da cultura portuguesa, história das representações e dos intelectuais na Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:
CeCom – Professor, sua palestra no seminário aborda o Republicanismo e a ética republicana em relação processo de globalização. Nesse sentido, como o senhor analisa a ideologia republicana na conjuntura social, econômica e política global?
Paulo Archer - A grande questão é que o ideal republicano é o “self- government”, como dizem os ingleses. E quer dizer auto governo, o governo muito próximo do representado e vice-versa. Remete até à organização do representado, do poder se associar, de formar aquilo que se chama de poliarquia. A república de fato é poliarquia, é contra o poder concentrado e é a favor do poder descentrado e localizado.
As velhas teorias políticas sobre a pólis grega e a República Romana apontam sempre para um dado fundamental: se governa bem o que é pequeno. Isto é uma lição de política do Aristóteles que diz que a pólis não pode ser muito grande porque é ingovernável e não pode ser muito pequena porque não é autossuficiente economicamente. Portanto, a república ou a ideia da república é uma ideia de governação possível, que tenta harmonizar as diferenças, que tenta, sobretudo, incorporar as diferenças.
O que é verdadeiramente característica da república é o fato de o bem comum ser superior ao bem individual. O problema é que na globalização o “self- government” não consegue sobreviver, porque o que hoje de fato impera no mundo, por lógicas econômicas, mas também por lógicas informativas, tecnológicas e de destruição ambiental, é um poder sem rosto.
Nós não sabemos ao certo onde está o poder, nós sabemos que há pessoas no poder, mas não sabemos quem está por trás, qual é a corporação, qual é o sistema. É muito difícil viver nesse jogo escondido do poder e isso destrói efetivamente o ideal da república, pois ela é a tentativa de tornar transparente a organização do poder. Nomes que não tem caras, pessoas que são nossos representantes, mas não podemos acreditar nelas.
O dever da representação é fundamental para a república e, sobretudo, pelo menos naquela área de “self- government”, o bem comum deve ser superior ao bem individual. Portanto, o poder anônimo, os poderes invisíveis subvertem lógica da república porque arruína a ideia de representação. Nós estamos a votar em quem?
CeCom – Mas, afinal que é o Republicanismo, o que ele propõe, qual é o seu ethos?
Paulo Archer - O republicanismo é uma ideia nascida na Europa bem anterior à Era Cristã. Ela surgiu para contrariar as proposições dos temas políticos que se tinha até aí: A monarquia, porque acabava sempre em um governo de tirania e, portanto, o republicanismo é uma alternativa à tirania.
Ela nasceu também para contrariar o governo da aristocracia, o governo dos poucos, porque eles sempre se transformam nos mais ricos, nas oligarquias e a república é frontalmente contra essa ideia. A oligarquia perverte completamente o sistema, uma vez que já não há uma representação do bem comum, mas de poucos.
Ela ainda nasce como correção das derivas demagógicas e populistas da democracia, isto é, a democracia sem responsabilidade, as promessas sem cumprimento. A república é um sistema de responsabilidade, é um pacto que os cidadãos estabelecem entre si e com o poder, com o seu representante para a boa governação.
O problema é que este pacto tem que se firmar na plena consciência do bem comum. Se essa noção é pervertida e transformada em bem de poucos ou só de um, a república não existe! Por quê? Porque destrói o fundamento da república, que é a cidadania e que passa pela princípio de que, perante a lei, todos cidadãos são iguais.
Viver a diferença na república
Bem sei que, historicamente, mulheres, escravos, estrangeiros e condenados não tinham direitos políticos. Um entrave tremendo à ideia da república. Mas, as conquistas sociais cada vez mais profundas de gênero, cor, religião, de conflitos ideológicos, fortaleceram a república como um grande guarda-chuva onde todos podem se abrigar, acoitando as diferenças, vivendo as diferenças. Porque, ao contrário das ideias positivistas do século XIX em diante, é a diferença que torna a sociedade extremamente rica. E este “chapeamento”, o molde, o standard não leva a lugar nenhum.
A república é o único sistema que permite viver, não com a diferença, mas viver a diferença. Pois o conviver com a diferença parte daquela base de tolerância: “Eu sou muito tolerante, então eu posso dizer que tu podes viver”. Mas, isso é uma desigualdade estrutural, porque quem faz esse enunciado está a se pressupor superior em relação àquele que é tolerável. O que quero dizer é que a república tem que se transformar num único sistema, em que a diferença é vivida como base, fonte da vida pública.
É a república que permite o alastramento do poder da cidadania, da atuação cívica e da própria afirmação da cidadania, a qual é a afirmação da diferença. Portanto, se houver uma organização civil suficientemente forte, uma organização fora do Estado, para atuar e defender sua cidadania, se houver uma consciência cívica, evidentemente isso forçará o ideal ético, o ethos republicano e também as liberdade civis, os chamados direitos humanos, que são a vida da república.
Não existe república sem liberdade e sem os conceitos fundacionais que nascem com a Revolução Francesa, por exemplo a igualdade, a fraternidade, a solidariedade entre os cidadãos. E isso não deve ser exercido apenas voluntariamente, mas como o apoio da própria legislação: criar uma lei de redistribuição de renda, de redistribuição do saber, de redistribuição de cargo, de méritos; pensar maneiras que contrariam a oligarquia e assim por diante. Porque a república é uma pedagogia da vida, é um aprender a ser, é uma questão ontológica, é uma disciplina para a alma.
CeCom – A virtude é um dos princípios do republicanismo. Como esse conceito se contrapõe à corrupção e às condutas não republicanas das nossas sociedades?
Paulo Archer - A corrupção não é uma invenção luso-brasileira, também não é inteiramente uma invenção italiana, por exemplo. (Risos)
A corrupção em alguns países é muitíssima discreta mas, muito mais eficaz. Portanto, vamos tirar da cabeça que nós somos os pecadores do mundo e que os outros são os santos.
Bom, a virtude republicana, que era do Cícero no século primeiro antes de Cristo, que era do Nicolau Maquiavel do século XVI depois de Cristo, são a espinha dorsal da ideia republicana. Isto tem a ver com questões como a honra. O republicano tem a honra de representar sua cidade.
Na boa fase da República Romana havia os patronímicos, pessoas que herdavam o nome dos pais. Se o pai tivesse sido uma pessoa honorável e justo, os filhos perpetuavam o seu nome. Mas, se o pai tinha se apropriado indevidamente de fundos ou feito algo parecido com o mensalão, os filhos não assumiam a herança e isso o nome desaparecia. A honra e a virtude é o centro da ideia republicana de poder.
E nesse sentido, há a questão do servir o bem comum, servir a coisa república, que é o que quer dizer res publica, não o servir a si próprio. E enquanto não houver claramente leis sobre enriquecimento sem causa, sobre gestão de patrimônio; enquanto o representado controlar o representante nisso, a política é incontrolável. Sem qualquer virtude o legislador pode legislar em causa própria, sem virtude o juiz pode julgar em causa própria e sem virtude o governante pode governar em causa própria. Então, o ethos republicano deve estar nas leis, poderia se colocar cláusulas éticas.
A vida está a demonstrar que as pessoas, vamos dizer assim, que não eram corruptas, começam fazer parte do sistema. Porque qual é o objetivo da atividade política? É a conquista do poder. E para conquistar o poder tudo mais ou menos vale a pena: comprar voto, influenciar com grandes campanhas eleitorais, fazer grandes promessas ou planos de transformação. E isso precisa de massas, montes de dinheiro que levam objetivamente à corrupção, para além dos mecanismos para servir a si próprio. Esse, curiosamente, é até mais o caso português que o brasileiro. Eu penso que no caso brasileiro a questão está montada para o sistema funcionar, isto é, para manter o poder. A oligarquia quer servir a si própria e, por isso, usa o poder.
CeCom – Como está sendo pensada e articulada a parceria entre o TECCER da UEG e o Ceis-20 da Universidade de Coimbra?
Paulo Archer - Da nossa parte, estamos mais que interessados na parceria. Primeiro, porque se trata de um espaço de língua portuguesa. Depois porque há um convênio entre a Universidade de Coimbra e a Universidade Estadual de Goiás, portanto, é só trabalhar materialmente esses convênios concretos entre o TECCER e o Ceis XX.
Eu penso que já está bem encaminhado. Há como fazer coisas muito interessantes, tem surgido muitas ideias. Não podemos falar ainda, porque é objeto de protocolo. Mas, há muitas áreas com as quais podemos dialogar, história, filosofia, farmácia, territórios... A parceria proporcionará abertura de novos espaços de pesquisa e possibilidades de interação acadêmica. Vamos fazer publicações em conjunto, porque na nossa área publicação é fazer ciência, nossos laboratórios são palavras, são ideias, são diálogos.
O trabalhar em rede hoje em dia é fundamental, nós funcionamos como massa crítica uns dos outros. Trabalhar isoladamente tem um grande problema, precisamos trocar informação e críticas. A crítica é o isco da nossa pesca. Quando o clima é muito ameno, onde não há a intervenção da crítica, não sabemos o que estamos realmente a fazer. E se funcionarmos como espírito crítico uns para os outros, sabemos avaliar.
Enfim, eu sou um pequeno provinciano de um cantinho da Europa e fiquei completamente deslumbrado com o Brasil. Então, da minha parte só não há parceria, se chover ferro (canivete) – brinca.
(Adriana Rodrigues | CeCom|UEG)