As mãos calejadas e ásperas, a pele queimada de sol, a vida suada na lida dura e diária, o vínculo com a terra. Algumas dessas características ou todas elas podem ser usadas quando nos referimos ao homem e à mulher do campo. Mas, quem são esses sujeitos, cujo trabalho continua sendo tão pouco reconhecido?
De acordo com Paula Junqueira da Silva Rezende, professora do Câmpus Iporá e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa do Espaço Rural da Universidade Estadual de Goiás (Geper|UEG), existem várias categorias de trabalhadores do campo.
“Temos o trabalhador assalariado, permanente ou temporário; temos o trabalhador da agricultura camponesa mais tradicional, em que o homem, a mulher e os filhos mantêm vivência e uma produção no campo e a renda é da propriedade; temos a agricultura familiar mais capitalizada, em que o produto vai para o mercado, mas quem gere a produção, controla e põe à venda não é um administrador, e sim o homem e a mulher, juntos. E, dentre esses, um tipo que faz toda diferença aqui na região de Iporá: são os trabalhadores do campo provenientes de assentamentos rurais”, explica.
Para a pesquisadora, os trabalhadores do campo hoje são a manifestação e resistência da territorialidade camponesa e também da (re)existência, que é o existir dessa cultura de forma diferente, ou seja, a reinvenção para continuar existindo.
Sobre isso, o professor Edevaldo Aparecido Souza, coordenador do curso de Geografia do Câmpus Quirinópolis, afirma que “por mais que a modernização da produção no campo tenha desterritorializado famílias de muitos camponeses, eles permanecem nos seus sítios produzindo alimentos para consumo direto, e reproduzindo a sua existência”. Isso significa que o processo de expansão do agronegócio, por exemplo, promoveu a readaptação e ressignificação das práticas sociais, dos modos de vida e dos vínculos desses trabalhadores com o lugar.
O trabalho no campo requer muito esforço físico, é uma labuta pesada, rústica e contínua. A grande parte das atividades precisa de um cuidado diário e não espera.
O professor Edevaldo explica que a rotina do trabalho do pequeno produtor rural segue a organização do espaço, do serviço na roça, dos afazeres domésticos, do trato dos animais e dos cuidados com o terreiro.
Segundo ele, quando as tarefas são apenas em sua propriedade, “é possível que o trabalhador tenha certa autonomia com relação à organização do tempo e aos outros serviços que podem esperar ou reacumular”. No entanto, no caso do trabalhador assalariado, essa autonomia é reduzida, pois existe o compromisso com tarefas diárias e horários a cumprir.
A professora Divina Aparecida Leonel, do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (Teccer|UEG), destaca que, no campo, o período do não-trabalho não quer dizer ociosidade, o dia de folga ou feriado não ocorre na mesma lógica que na cidade.
“O não-trabalho do sujeito na lavoura, por exemplo, significa que ele está cuidando das suas criações, da sua casa ou do seu pomar, é uma lida constante. No setor leiteiro, por exemplo, que é a atividade produtiva mais importante na agricultura familiar no Brasil, o trabalho é diário. Tanto é que, quando o homem ou a mulher ficam doentes, quem os socorrem são os vizinhos da sua comunidade rural; o leite precisa ser tirado, porque existem perdas se aquele trabalho não for feito” analisa Divina Aparecida.
A professora observa que, muitas vezes, nos acostumamos a enxergar o campo pela ótica romanceada, bucólica, como um lugar lindo e de descanso. No entanto, a realidade do homem e da mulher do campo é dura, e o seu trabalho deveria ser muito mais valorizado por quem vive na cidade.
Na organização do trabalho no campo, as mulheres realizam tarefas em conjuntos com os maridos e filhos, fazem o serviço doméstico e, não raras vezes, assumem sozinhas algumas atividades, mas, ainda assim, sua figura é invisibilizada.
Para a professora Divina Aparecida, isso é apenas um reflexo da sociedade patriarcal e machista em que vivemos e que no campo se reproduz o mesmo que acontece na cidade. No campo, porém, há uma característica ainda mais séria, porque esse é um contexto mais tradicional, com menor acesso às informações, e as mudanças culturais são mais demoradas.
E não é apenas o trabalho das mulheres rurais que não é reconhecido, os problemas que as angustiam também são invisíveis para a cidade, por exemplo: a saída dos filhos do ambiente rural, o avanço de drogas nos assentamentos e comunidades rurais, a violência doméstica, o aumento do alcoolismo, a gravidez das adolescentes rurais.
Mas, independente disso, a pesquisadora lembra que há vários exemplos, inclusive em Goiás, em que é o grupo feminino, principalmente de assentadas rurais, que conduz as atividades econômicas e produtivas. “São elas que organizam associações, cooperativas, são elas que organizam a questão da alimentação. A gente percebe isso também em comunidades quilombolas. As mulheres negras estão projetando atividades que resgatam a cultura e que se transformam também em produtos pra um mercado que começa a ser promissor”, aponta Divina.
Esse empoderamento da mulher tem reverberado até no desenho político de reforma agrária. As mulheres acampadas, chefes de famílias, têm preferência nos loteamentos porque, historicamente, possuem um vínculo com a terra maior que o do homem. As mulheres estão assumindo um cenário de protagonismo no campo.
“A gente percebeu isso lá no Encontro das Mulheres Rurais da Agro Centro-Oeste de 2017. Vimos a preocupação, o cuidado que as mulheres têm com suas comunidades. Elas vêm como representantes dos seus grupos, trazem as demandas e se comprometem a repassar as informações e levar todas as melhorias”, comenta a professora e assessora de Programas e Projetos da Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis (PrE), Paula Chagas. Ela, juntamente com a professora Divina Aparecida, organizaram o 2º Encontro das Mulheres Rurais da Feira da Agro Centro-Oeste, no ano passado.
Ainda de acordo com Paula Chagas, as mulheres do campo tem se estabelecido independente dos homens, assim como as mulheres da cidade. “Inclusive muito mais organizadas. Elas têm o que a gente ainda não conseguiu atingir na cidade: o senso de comunidade. É muito bonito de se ver. Precisamos aprender sobre coletividade com a mulherada do campo, é incrível!”, salienta.
O Encontro das Mulheres Rurais de 2018 ocorrerá no dia 9 de maio e será organizado pelo Centro Vocacional Tecnológico APinajé - Jovens e Mulheres e pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Confira a programação completa da Feira Agro Centro-Oeste Familiar AQUI.
A constante ênfase no trabalhador da cidade acaba ofuscando a importância do trabalho das pessoas do campo. Segundo o último Censo Agropecuário, realizado em 2006, a agricultura familiar representa mais de 80% dos estabelecimentos agropecuários do Brasil. Além disso, ela é a grande responsável pela maioria dos alimentos consumidos no País, cerca de 70%.
“Esses sujeitos contribuem em escala local e/ou regional com a produção alimentar, muitas delas de forma mais saudável, sem uso abusivo de agrotóxicos, e disponibiliza para comercialização em cadeias curtas para a população urbana”, assinala o professor Edevaldo.
E no processo de reconhecimento dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, a universidade desempenha um papel substancial, como explica a professora Paula Junqueira:
“Quando a gente traz a universidade para o interior e investe na formação do material humano, intelectual, tecnológico, produtivo, voltados para as características locais, para a valorização do trabalhador rural, não só fixamos esse sujeito no campo, como também minimizamos os impactos ambientais e contribuímos para uma melhor dinâmica social e econômica”.
Para a professora Divina Aparecida, nesse contexto, a UEG, que tem estrutura multicampi, é ainda mais cobrada, porque possui alta capilaridade para atingir as comunidades rurais. “Nós pesquisadores, professores, extensionistas, temos que rever nossos modelos e voltar os olhos para essas comunidades de forma ainda mais séria e comprometida, porque o campo precisa muito da universidade e eu creio que a universidade também precisa do campo”, pondera.
Ainda se faz necessário que o Estado repense a importância da cultura e do trabalho do campo, criando e fortalecendo políticas públicas que garantam melhores condições de vida para que os homens e mulheres rurais, continuem a viver e trabalhar na terra.
O Câmpus de São Luis de Montes de Belos desenvolve dois importantes projetos de extensão com pequenos produtores da região.
Conforme o professor Klayto José Gonçalves, coordenador do Mestrado em Desenvolvimento Rural Sustentável, um deles é um projeto de extensão rural desenvolvido com o apoio da Emater. Nele, os pequenos produtores rurais recebem assistência técnica para trabalhar com bovinocultura de leite. O projeto também engloba a gestão da propriedade rural.
Além disso, por meio do Centro de Biotecnologia em Reprodução Animal (Biotec), a Universidade realiza um projeto de transferência de tecnologia para o produtor rural. “O laboratório leva ao produtor que não tem condições financeiras a inseminação artificial e a transferência de embriões para melhoria do rebanho leiteiro”, explica.
“Estou entusiasmado. Eu nunca tinha visto um ultrassom do útero da vaca, isso foi muito interessante pra mim”, conta seu Jorcelino Ferreira Filho. Ele é proprietário de uma chácara de um alqueire e meio e participa do projeto de transferência de embriões da UEG há 4 meses. Os embriões foram transferidos para uma vaca e cinco novilhas do rebanho do pequeno produtor.
Nascido e criado na roça, seu Jorcelino encara os avanços da tecnologia com grande expectativa: “Eu acredito que vai melhorar. O professor explicou que o embrião que foi colocado na minha novilha, quando virar vaca vai dar 30 litros de leite numa tirada. As vacas que eu tenho hoje dão sete ou oito litros de leite, uma ou outra que dá 12. Para mim vai ser uma mudança de história”.
(Adriana Rodrigues | CeCom|UEG)