Para finalizar a série de reportagens especiais, escritas e publicadas em comemoração aos 16 anos de criação da UEG, celebrado ontem, 16 de abril, preparamos uma entrevista que aborda as particularidades da Instituição.
Como a Universidade Estadual de Goiás afeta a vida dos sujeitos que a compõem? Como a trajetória desses sujeitos, de nossos alunos e alunas, interfere na forma como ensinamos, planejamos nossas aulas, fazemos pesquisa, propomos projetos de extensão? Quem são esses estudantes? Qual é o nosso perfil de alunado? Como a Universidade se repensa?
A seguir, encerrando a semana de reportagens, você confere uma entrevista com o pró-reitor de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis da UEG, professor Marcos Torres. O texto é, essencialmente, sobre pessoas. E sobre histórias.
Tenham, todos, uma boa leitura!
Por uma verdadeira inclusão
Com entusiasmo, Marcos Torres relata a história de uma aluna sua que, depois de ter entrado na Universidade Estadual de Goiás (UEG), começou a se perceber, a se reconhecer e a atuar politicamente como mulher negra. Esse relato, na voz de Marcos Torres, soa quase como um troféu. “Não há como mensurar algo assim”, diz. E completa: “Esse é o indicador de excelência da UEG. Os pressupostos colocados para o ensino superior não dão conta de alcançar algo assim”.
Esse exemplo dimensiona o alcance da UEG: ela não se trata de uma universidade pensada para as classes urbanas médias, mas sim para uma população que se encontra fora dos lugares de privilégio. Essa é uma Universidade - como aponta o pró-reitor de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis - que é pensada e construída fora de parâmetros estabelecidos e que, ao mesmo tempo, dá conta de uma população que precisa ser atendida por outra perspectiva, seguindo uma lógica diferenciada.
“Nossos estudantes têm inúmeras trajetórias que precisam ser consideradas em nosso projeto. Eis o nosso desafio: subverter a ordem colocada e pensar esse sujeito, que é dono de sua história”. Foi exatamente sobre tais sujeitos que conversei com o professor Marcos Torres. Para o pró-reitor, a UEG tem um papel essencial no Estado de Goiás e é preciso que isso seja reconhecido. Para que tal reconhecimento reflita em Goiás e em sua população deve haver, primeiro, um movimento interno na Universidade, que inclui toda a comunidade universitária, no sentido de reconhecer-se nesta importância social.
Segue a prosa. Tomara que vocês se (re)conheçam em cada linha, e em cada motivação da palavra dada.
Fernando Matos – Como o senhor definiria a UEG?
Marcos Torres – Eu diria que o elemento fundamental para a UEG, seu elemento de princípio, é a democratização do acesso ao ensino superior. Essa característica se liga à interiorização, que faz parte de sua história, de sua identidade. A UEG se define institucionalmente por essa democratização. E isso causa um impacto muito grande na sociedade.
FM – Qual seria, em sua visão, o perfil dos estudantes da UEG?
MT – Majoritariamente formado por mulheres, na ordem de 60%. São alunos e alunas negros e negras. Pretas ou pardas – que esteticamente denominamos ‘negros’, de acordo com a adoção brasileira. São pessoas com trajetória educativa em escola pública, vindas de famílias com até três salários mínimos e que se inserem cedo no mercado de trabalho. E, mais além, somos uma Universidade interiorizada. São alunos que experimentam os mais diversos processos. Poderíamos dizer que somos a universidade dos excluídos, uma universidade de trabalhadores.
FM – O fato de sermos uma “universidade dos trabalhadores” (e não uma universidade dos filhos da classe média) implica em uma mudança de metodologias?
MT – A primeira providência é entender que o estudante é o sujeito desse processo. É ele o centro dessa construção. O discente é o sujeito da aprendizagem, os alunos e as alunas são os agentes. A Universidade precisa reconhecer isso. E não digo apenas um ‘reconhecimento formal’, mas um reconhecimento efetivo. Se a gente assim fizer, a gente dá passos largos muito à frente. Muita gente quer federalizar a UEG. Não para entregá-la à União, mas porque querem adotar o modelo das federais. Não devemos fazer isso. Nossa experiência é outra, nossos alunos são outros. As federais foram, e ainda são, voltadas para as elites. Nós temos outros padrões de excelência, outra referência de qualidade.
FM – Por que há essa tentativa de “federalização”?
MT - Porque esse é o modelo instituído. É a zona de conforto. É preciso entender que a UEG tem outra dinâmica. Nós atendemos outro perfil de ingressantes, um perfil que não é atendido pelas federais. Nossos alunos estão fora da elite. Dessa forma nós temos de mudar nossa compreensão de processo educativo no ensino formal, que historicamente foi instituído para as elites. As pessoas querem que a UEG avance no mesmo tempo, no mesmo perfil e com os mesmos indicadores de qualidade de instituições mais antigas. Não devemos pretender que os projetos de qualidade de outras instituições sejam os da UEG.
FM – Há um elemento conversador na Universidade e em sua compreensão de processo educativo?
MT – Toda instituição é conservadora e a universidade, como tem pressupostos de qualidade que se ligam ao rigor científico, também é: é a ‘demonstração de produção’ que cria uma compreensão de excelência. Há certo dogmatismo: ensinar é isso, é assim, e o conhecimento só pode ser assim, a trajetória deve ser essa. Mas eu não me canso de pensar que estamos falando de um aluno trabalhador que pega uma carga de leitura altíssima: em torno de 20 páginas em sete disciplinas... É impossível, lembrando que nossos alunos não têm a mesma relação com leitura já instituída na Academia, que eles são pessoas que se encontram, muitas vezes, fora da tal elite cultural.
FM – E qual seria o caminho de excelência da UEG? Como ensinar e pesquisar nessa Universidade, tornando o aluno sujeito ativo, agente transformador?
MT – Temos de nos vincular à realidade: que estudante é esse? Como ele faz a sua trajetória? Quando dermos conta de fazer isso, nós qualificaremos nosso processo acadêmico. É um movimento altamente complexo, inovador e difícil, mas que já está em curso. Então é esse o elemento de construção de excelência: um diálogo profícuo com a realidade dos alunos e com as formas com as quais eles acessam a informação. Os debates sobre as matrizes curriculares já explicitam um tensionamento interno em torno dessa questão.
FM – A trajetória dos estudantes da UEG e o próprio ambiente universitário não deveriam fomentar, por si, o debate sobre as diferenças?
MT – A diferença não pode ser uma pauta estritamente declaratória de princípios. Ela tem de ser considerada no processo cotidiano. Não adianta fazer um discurso em torno das diferenças nas relações étnico-raciais, por exemplo, e compreender que a população negra precisa ter outro ambiente pedagógico, sem saber que o debate sobre sua identidade é fundamental para que ela se coloque no mundo do conhecimento. Esta compreensão as universidades ainda não adquiririam. Nelas, o debate sobre a diferença é pontual, ou seja, ainda é localizado, quando na realidade devia ser um exercício ancorado na prática do dia a dia em sala de aula. Isso é a parte do processo de transformação que o mundo esta impondo às universidades.
FM – O que fazer para ir, então, do discurso à prática?
MT – Neste ponto, a UEG está muito bem. Aqui, o discurso de respeito às diferenças não é apenas retórico, é um fato. Aliás, é a cara da UEG. É a nossa experiência cotidiana. É o estudante que não sabe ler no rigor ou escrever no rigor da cultura erudita. Mas, calma, só por isso ele não deve entrar? A solução para ele não seria, justamente, a de entrar? A solução não seria ‘ele entrar’ e nós, como Instituição formadora, efetivamente dialogarmos com ele? A solução não seria pensar como nós vamos exercitar a diferença de tempos entre um e outro no processo de aprendizagem? Por aqui há um elemento intenso disso: nós criamos um ambiente de respeito e valorização da diferença. É o que a universidade se propõe ao instituir uma disciplina de núcleo comum, que será cursada por todos, que se chama “diversidade, cidadania e direitos”. A UEG se propõe a construir esse ambiente em que a diferença faz parte da cidadania, produzindo direitos. E esses direitos precisam ser exercitados, inclusive, na universidade.
FM – Essa disciplina de “Diversidade, cidadania e direitos”, proposta como núcleo comum na nova matriz curricular, é uma das medidas adotadas para promover um ensino que seja, de fato, mais condizente com nossa realidade de atendimento às diversas populações. Quais os outros mecanismos que a Universidade tem adotado para que essas populações sejam inseridas?
MT – A Universidade tem buscado de forma mais sistemática, principalmente nesse reitorado, um ordenamento acadêmico nesse sentido. Há iniciativas como as políticas de acompanhamento de cotistas, os esforços para implantar o núcleo de ‘Gênero e Diversidade Sexual’, o fortalecimento do ‘Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas’. Tudo isso vem acompanhando o movimento mais ousado: a inclusão da disciplina de ‘Diversidade, cidadania e direitos’ para todos os cursos da UEG. É um movimento de muito fôlego. Um enorme desafio. Com ele, nós estamos dizendo aos estudantes: ‘esse é um debate muito importante, essencial a suas formações’. Não só para os estudantes, mas para todo o corpo acadêmico. O que a universidade diz é: ‘esse é o centro que nos define, que define nosso perfil institucional’. Portanto, as consequências desse anúncio – acadêmica e politicamente – redimensionam, para todos saberem, o nosso papel.
FM – Nesse sentido, você acredita que as pessoas têm dimensão da importância da UEG para o Estado?
MT – Certamente não. Não acredito, inclusive, que seja um debate consolidado mesmo dentro da Instituição.
FM - Por fim, como o senhor avalia o papel da UEG nesses 16 anos?
MT – Eu acredito que é uma grande vitória a universidade completar 16 anos, contrariando muitas expectativas. É uma universidade que se reinventou em uma trajetória muito curta, que produziu um tipo de sentimento de pertencimento em pessoas que vinham de outras trajetórias em instituições diversas que a formaram, pois a UEG vem da junção, ocorrida em 1999, de faculdades isoladas que já atuavam em terra goiana.
Cumprimos o importante papel ao empreender o maior processo de qualificação docente no país: as licenciaturas plenas parceladas. Tal programa foi um grande mérito e uma importante contribuição social.
Mas, principalmente, o fato que mais nos orgulha é que a UEG alterou horizontes e olhares nos mais diferentes municípios, em pessoas que jamais poderiam fazer isso em uma Universidade, se não fosse por essa Instituição. A esses estudantes, que estariam excluídos de outros universos acadêmicos, a UEG alterou rotinas, visões de mundo e formas de se relacionar com suas próprias experiências. É um espaço que prepara os diferentes municípios para novas dinâmicas, novas lógicas de protagonismo e empreendedorismo.
A UEG age nas pessoas. Age para suas vidas. Percebo esse ganho como imensurável. Nenhum dos grandes indicadores do MEC consegue alcançá-lo. A UEG é primordial nesse sentido: possibilita a experiência de quem se reconhece como sujeito autônomo e de quem, a partir desse reconhecimento, pode anunciar sua voz, dizer quem ‘quer ser’. De quem pode anunciar a vida que quer ter. Esse é o alcance da UEG.
(Fernando Matos | CGCom | UEG)
(Revisão e Edição Final: Luana Borges; Arte da matéria: Lia Bello; Arte "topo UEG 16 anos": Guilherme Cadoiss)