Professora de Literatura da Universidade Estadual de Goiás (UEG) no câmpus Pires do Rio, Márcia Maria de Melo Araújo, em sua tese de doutorado, dedicou-se ao estudo da imagem da mulher nas cantigas de amigo de trovadores galego-portugueses. Com o título Imagens femininas e de feminização da mulher nas cantigas de amigo galego-portuguesas (2013), a professora foi buscar, nos textos trovadorescos, um corpus para pensar a imagem da mulher na Idade Média. “Na tese desenvolvida, levantamos imagens femininas sancionadas pelo gênero e imagens de feminização nos elementos da voz lírica”.
As cantigas de amigo surgiram na Península Ibérica e, com origem popular e marcadas pela oralidade e fácil memorização, elas apresentam um eu-lírico feminino. Entretanto, são construções feitas por autores masculinos que, “mascarados” sob personas de mulheres, dizem sobre os corpos femininos.
Não raro, os temas, formulados a partir das fantasias e dos desejos dos autores acerca da realidade da mulher, são a ansiedade em decorrência da ausência do amigo, o sofrimento por amor (que leva às vezes até à morte), a enganação à mãe vigilante. “Não vemos como possibilidade uma total abstração da subjetividade do trovador, ao fazer um tipo de cantiga ou outro”, diz a estudiosa.
Abaixo, vocês podem curtir um ótimo bate-papo sobre literatura e suas implicações para a formação do imaginário social sobre o feminino da época.
CGCom – Como surgiu ideia de trabalhar gênero a partir das canções de amigo?
Surgiu do interesse em estudar a imagem da mulher da Idade Média em Portugal. Queria fazer um estudo que abrangesse as fontes de leitura obrigatórias sobre a visão da mulher na Idade Média, em especial os aspectos que promoveram a representação do feminino nos poemas trovadorescos. Tínhamos como propósito inicial fazer uma retrospectiva da literatura galego-portuguesa com foco na caracterização da imagem feminina, tendo por objeto de análise as pastorelas, espécie de composição poética sobre amores de pastoras.
CGCom – O que representa a literatura dos séculos XII e XIII na história das construções do “feminino”?
A literatura cortês dos séculos XII e XIII representa uma ruptura na história da sexualidade no Ocidente. Isso porque a obsessão pela castidade, por parte dos padres da Igreja e também dos poetas, leva à conclusão de que na história dos gêneros sexuais houve um momento de transformação que levou à adoração da mulher. De acordo com a tese de Bloch, de 1995, “o ascetismo do período anterior foi, na Alta Idade Média, transformado numa idealização da mulher e do amor”. Não vemos como possibilidade uma total abstração da subjetividade do trovador, ao fazer um tipo de cantiga ou outro. Há a contaminação da cantiga de amigo pela ideologia simbólica das cantigas de amor, que trazem o erótico, embora refreado pela ausência do corpo.
A corporificação só se faz presente pela realização do amor, que é apresentada de forma simbólica numa grande quantidade de cantigas. Noutra parte, é apresentada de forma declarada. Esses casos se aproximam dos ritos pagãos em que a mulher tem papel preponderante.
CGCom – Fale-nos um pouco sobre feminização da imagem nas obras estudadas. O que isso significa?
Na tese, levantamos imagens femininas sancionadas pelo gênero e imagens de feminização em alguns elementos. Para que se entenda, basta dar um exemplo: o das avelaneiras, cuja simbologia remete à fertilidade, sendo seu fruto, a avelã, associado à genitália feminina e utilizado pelos poetas como suporte de encantação.
Como imagem simbólica, temos a avelaneira florida, em volta da qual as moças dançam, como acontece na cantiga de Airas Nunes: “Bailemos nós já todas três, ai amigas”.
Ora, nesse caso, há um elemento que não é masculino e nem feminino, mas que serve como imagem de feminização, e simboliza a empatia da voz lírica. É um elemento orquestrado pela ideia de feminização.
Em relação às imagens femininas sancionadas pelo gênero, avaliamos algumas figuras como a amiga; a mãe; a pastora; a filha; a dançarina de bailias; a donzela de tranças; a moça que aguarda ansiosa a volta do amigo; a leda que espera o amigo na fonte; a que vive no campo; a que vive na corte; a que vive nos burgos... para elencar alguns dos mais variados tipos de figuras femininas.
CGCom – Lendo o trabalho, fiquei com impressão de que a senhora traça uma linha separatória entre erotismo e sensualidade. Por que a senhora faz essa separação?
Apresentamos a elaboração de novas figuras, como a mãe-amiga ou namorada, a mãe confidente, a amiga confidente, e algumas referências em harmonia com o ethos cristão. Nesse caso, os exemplos são: a amiga que reza o Patre nostrus ou que vai, em romaria, visitar locais cristãos como o túmulo de Santiago de Compostela e outros. Notamos, por meio de uma sensibilidade a um mundo povoado de significados, em uma natureza que se manifesta pela presença de Deus e o componente imaginário, que a representação da mulher, de uma forma geral na Idade Média, mantém-se entre a dualidade. A mulher ora aparece “louçana” [alegre, contente, bela], ora “sanhuda” [irada, zangada]. Ora ela aparece “leda” [alegre, contente], ora “sen ventura” [infeliz]. Ora está “fremosa, ben talhada e velida“ [formosa, de corpo bem feito e bela] ou “fea, insana e sandya” [feia, louca, insensata].
Por esses adjetivos polarizados em imagens contraditórias, vê-se o que acontecia na vida da Idade Média. Naquele período, a mulher era tratada, segundo textos legados dessa época, entre a adoração e a difamação simultâneas. Por um lado, havia a ode à mulher perfeita, com atributos oriundos da Virgem Maria e, de outro, o apelo à mulher diabolizada, resquícios da culpa de Eva pelo paraíso perdido. Desse modo, o erótico e o sensual se tornam dois aspectos que reforçam essa dualidade.
CGCom – Em que medida as canções falam, de fato, da mulher e não da mulher idealizada pelo homem, para servir a esse homem?
Algumas cantigas narram cenas do cotidiano da mulher galego-portuguesa. Nesse aspecto, elas trazem uma representação de ambientes domésticos, onde se desenvolvem cenas em que a jovem aparece. Embora seja o trovador quem ofereça um perfil das relações amorosas e sociais, envolvendo a mulher do campo e da cidade, é forte nesses tipos de cantigas a presença do diálogo, apontando para a vida cotidiana da mulher, nos seus anseios alegres ou tristes, eufóricos ou decepcionantes, via de regra relacionados à satisfação amorosa. Nesse sentido, essas cantigas se diferem das cantigas de amor, em que a imagem aparece mais idealizada.
CGCom – Podemos pensar que as canções, em alguma medida, falam do conflito entre o desejo de sentir prazer e as barreiras impostas?
Sim. A maior parte das cantigas de amigo fala do sofrimento por algum tipo de interdição, seja por parte da mãe, do rei, do trabalho do amigo, ou mesmo do fim de um relacionamento. Para se libertar da rigidez da hierarquia feudal, em geral, o homem medieval procura um paraíso artificial. Embora o trovador pertença à nobreza, ele sente a estratificação do sistema feudal. E ele expressa esse sentimento pelo fingimento poético e pelo poeta que, diante da dama, torna-se vassalo.
Não sabemos até que ponto o homem medieval cortês se impõe a abstenção de relações amorosas com outra mulher que não seja a desejada, entretanto sabemos que são relações proibidas, sublimadas pelo seu caráter de não realização carnal. A materialidade da imagem da mulher – e não mais sua idealização – se atesta nas cantigas de amigo. O feminino se corporifica pelas ações e expressão de sentimentos, porém é dicotomizado entre a submissão e a sedução.
CGCom – Como o estudo de produções literárias de outras épocas pode contribuir para o entendimento das relações de poder e controle dos corpos e desejos que se estabelece hoje?
O aparecimento do amor cortês fez parte de um momento singular na história da mulher. Nesse momento, surgiu a obsessão da mulher como fonte de todo o mal ou como portal do inferno, ou ainda surgiu a obsessão, por outro lado, da mulher como fonte de todo bem ou porta do céu.
Nas cantigas de amigo, a mulher fala de sua própria beleza, apontando-se como fremosa e ben-talhada. Por meio desses adjetivos, pronunciados pela donzela a partir do tratamento que lhe dispensava o cavaleiro, o trovador deixa transparecer a sua consciência sobre os meios de realização de sua poesia. Para melhor compreensão, as cantigas exigem do leitor um conhecimento das condições histórico-sociais do contexto em que se desenvolveram. É desse contexto que emana as primeiras fontes do patrimônio lírico da Língua Portuguesa.
(Fernando Matos| CGCom)